sexta-feira, 29 de abril de 2011

7° ETAPA DE DESTILAÇÃO

DE QUE LADO NÓS ESTAMOS? 
(1968 - O ANO QUE NÃO TERMINOU)
 
Ainda me restava mais uma aula. Nada pior numa quarta-feira à noite do que aula de Pedagogia. Ouvir um professor, que sequer acredita naquilo que diz, palestrar sobre educação, é opressivo! Esses professores são engraçados, sejam eles do ensino fundamental, médio ou superior, não percebem que essa educação funciona mais como lavagem cerebral do que qualquer outra coisa. Noutra "aula", de Barthes, este dizia que a linguagem é simplesmente fascista não porque nos impede de dizer, mas, antes, porque nos obriga a falar. Só lembrarmos a figura do padre ou do psicanalista. Aí, depois, vêm aquelas pessoas grunhindo sobre “liberdade de expressão”, só para legitimarem, na verdade, mais e mais as besteiras que pretendem dizer. A linguagem não é neutra, nem informativa: "a linguagem não é feita para que se acredite nela, mas para ser obedecida”, disse um outro filósofo francês. Quando um professor explica a sintaxe aos alunos, ele não está passando, inicialmente, informações, mas, ao contrário, mostra-lhes comandos e palavras de ordem, e, assim, faz com que seus pupilos produzam enunciados corretos, necessariamente segundo as significações dominantes. Por exemplo, quando digo 2 + 2 = 4, estou produzindo um diálogo ou um “imperativo categórico”? Por isso, preocupa-me bastante essa ideia, muito difundida na mídia, de que o Brasil precisa de educação. Que tipo de educação? Essa que aí está? Educar pra quem? E pra quê? Para instigar o desejo de criação ou para introjetar nos jovens mais uma vez a imagem dominante a fim de que reproduzam a ordem estabelecida? 


A educação actua essencialmente como um meio, que arruína a excepção em proveito da regra. Por sua vez, a cultura é essencialmente o meio de revirar o gosto contra a excepção, em proveito da mediania. (F.N., Vontade de Potência)


Pois bem, o tempo estava nublado, eu me sentia um porre, o estômago reclamava e a cabeça doía. Pra compensar a aula que acabara de matar, fui buscar uma corrente de ar numa nova “sala”, a “aula das dez”, no bar mais próximo, em frente à universidade. Preferi sentar-me do lado de cá, onde havia menos barulho, bem afastado do bando de estudantes que comemorava sua chegada àquela instituição de ensino. Queria ler um pouco de jornal, nem tanto pelo o que dizia, mas porque estava sozinho — e sem dinheiro, como de costume. Notei um homem mais velho, na faixa dos seus 65 anos, sentado perto de mim. Parecia um bonachão, com uma vasta cabeleira grisalha, uns óculos enferrujados e, de braços cruzados, apenas observava o burburinho à sua volta. Ele sorria como o gato de Alice, num sorriso sem riso, de quem já teve tudo nessa vida e, agora, só lhe restara, senão, a própria integridade. Bebia vodka, e eu também estava muito a fim de beber daquele néctar dos deuses, já que, àquela época, embriagava-me todos os dias do teor destilado de Crime e Castigo. Eu o olhava de lado, por cima do jornal. Desviei o olhar por um instante, ensimesmado, e quando voltei a olhá-lo, ele também me olhava. Tomei um susto, é claro, demonstrando um tímido nervosismo. E, como não tinha pensado em nada, perguntei meio atabalhoado, “Opa, tá gostando do jogo?!”. A seleção brasileira jogava contra os americanos debaixo de chuva, num perfeito futebol de várzea. Ele me falou que, apesar dos pesares, torcia pelo Brasil. Diante disso, não me restou outra alternativa, senão, arriscar, numa cara de pau já habituada — a sede era gritante — uma pergunta necessária, “Posso-me sentar contigo?”. Ele deu de ombros, mas assentiu com a cabeça, dizendo-me que, se eu lhe proporcionasse um papo legal, a fim de compensar aquela partida terrível e as pessoas dispensáveis daquele recinto, ele me deixaria ficar. E permaneci por muito tempo ao seu lado, como irá perceber o leitor, à medida que essas memórias forem narradas. Sentei-me, com o orgulho e a dignidade de um bon-vivant. Notei que, se continuasse falando de futebol, seria expulso da mesa no próximo passe errado do jogo, uma regra naquele campo encharcado. Como era graduado na escola da vida, vi dentro do seu embornal, que estava semi-aberto, mais uma garrafa de vodka e um monte de livros, dentre os quais, La Nausée, de Jean-Paul Sartre. “A hora é agora”, pensei.


— Desculpe-me, não sou sempre assim, mas não posso evitar, gosta de Sartre?


Ele tomou outro gole de sua bebida transparente e, surpreso com a pergunta, respondeu:


— Começaste bem, rapaz! Minha relação com a literatura francesa é longa. Sou ex-professor universitário, mas, hoje, vivo de minha aposentadoria. Lecionei literatura e filosofia em algumas universidades. Se quiseres entender melhor, escute-me com atenção.


— Todo ouvidos — disse-lhe, enchendo meu copo.


— Minha mãe nasceu em São Luís, no Maranhão. Filha de franceses, veio para o Espírito Santo com a família ainda jovem, onde conheceu meu pai, um típico operário alemão. Por minha vez, acabei nascendo no sul do estado, em Iconha. Meu pai era socialista, por isso, sugeriu que me chamasse Carlos Marques. Assim, além do português, entendo um pouco do germânico e do francês. Num curto período, quando estive na França, em maio de 68, fui um militante esquerdista. Ainda sou, mas de outra maneira. Naquela ocasião, conheci de vista pensadores como Foucault, Deleuze, e o próprio Sartre, que já estava bem velhinho. Este, aliás, dizia sempre que deveríamos ser totalmente intransigentes contra toda forma de opressão — vasculhou com sofreguidão sua bolsa e mostrou-me “A Náusea”, na versão original. — Depois, no mesmo ano, estive no Rio de Janeiro e em São Paulo, durante os movimentos estudantis.


E a partida rolava à solta enquanto os estudantes, completamente ébrios, deitavam e rolavam numa festa sem tamanho. Carlos me falou que, por influência da mãe, interessara-se por literatura, e do pai, a esquerda. Dizia ainda ser louco e possuir um sistema nervoso “antipático” aos tiranos. Os copos, molhados de vodka, seguiam seu roteiro austero.


— Tanto minha experiência em 68, como a própria literatura e filosofia, ensinaram-me duas coisas importantes. — tirou um estojo, onde havia charutos cubanos, acendeu um deles, oferecendo-me outro, aceitei de prontidão, embora não fume com tanta freqüência, só em ocasiões especiais, como aquela. — Primeiro, um organismo morre, mas uma boa ideia sempre perpetua, mesmo depois de muito tempo; e, mesmo apesar dos homens de pouca fé, uma boa ideia, por fim, pode mudar o mundo. E, segundo, não devemos temer o medo, mas ao contrário, é o medo quem deve nos temer. Você só se torna completamente livre quando não sente mais medo. O medo é a arma mais eficaz de um governo e, através dele, o estado consegue nos disciplinar, vigiar e punir... e controlar — Levantou-se em direção ao banheiro, só que, antes, pegou uma caneta e anotou uns versos, num guardanapo todo amarrotado, dizendo-me que era um presente pela minha generosa atenção. Embora o papo estivesse agradável, meu desejo mesmo era beber bastante aquela noite, até o penúltimo copo. E ele sabia que seria à sua custa. Muito depois, quando fui embora, tive que pular a roleta, pois não tinha dinheiro nem pra passagem, por isso, só mais uma audácia, caro leitor: salário mínimo, no Brasil, é um pleonasmo.

“Quando morava em Iconha
Fumava muita maconha
Mas hoje é outra história
Pois vivo na grande Vitória.”

— Permita-me também falar um pouco sobre o medo, a fim de que não entenda minha companhia apenas por causa de sua vodka — disse-lhe sorrindo e com uma ideia que me possuía já há algum tempo. — É evidente que o medo surge quando percebemos nossa finitude inexorável e insignificância diante da existência e desse imenso universo. A morte como algo inevitável, tendo o tempo como nosso algoz mais feroz. A dor e o sofrimento como receitas indissociáveis à condição humana. No entanto, o que torna minha geração, produto de pais divorciados, pós-ditadura, tão apática e irresponsável, quando se trata de questões políticas? Nossos pais saíram cedo de casa, em busca de seus sonhos, lutaram e conquistaram uma “liberdade” que parecia impossível, num momento totalmente contraditório. Tudo bem, hoje, recebemos, graças a eles, algumas promessas até então impensáveis. Mas eles não imaginavam que suas conquistas representariam, de todo modo, para seus filhos, um presente de grego. Chamaram a revolução e fizeram a abertura política, entretanto, deixaram-nos um caminho incerto e sem horizontes. Em outras palavras, como disse Sartre, o homem livre é um homem angustiado, porque não possui em suas mãos um mapa que diz como viver a vida. Não quero absolutamente outra ditadura, entenda, mas nos restou, parece-me, apenas essa falta de sentido tremenda em relação ao futuro. Quanto ao medo, não sei dizer, mas, diante de tanto terror, de um inimigo concreto, o governo militar, nossos pais não acabaram projetando seus temores em cima da gente, tornando-nos essa maravilha insossa que somos, e, por tabela, uma geração frágil, medrosa e indecisa? — Não tinha entendido nada de seus versos, mas, talvez, aquela estrofe pudesse ser um convite, imaginei.


— Essa náusea que acabas de me contar é, na verdade, não só um mal-estar posterior à ditadura, mas sintoma de todo um século. No Brasil, o governo militar, como disseste, e, na Alemanha, com a queda do muro, por exemplo, contribuíram em muito para produzir uma geração de jovens desacreditados e sem rumo. Até a família dita nuclear, com o fim, fez desaparecer algumas referências. Isso, ao menos, aparentemente. No entanto, as referências existem, sim, e não são metafísicas. Se ficarmos conscientes até o fim dessa noite, você vai compreender que ainda há muito por lutar. Pois bem, essa falta de perspectiva produzida em sua geração, além do medo e apatia desmedidos, é uma forte característica do século XX, que gerou, com efeito, essa enorme falta de posição política na juventude, no final desse século. Veja os jovens de hoje, não sabem mais de que lado estão. Todos parecem flutuar à deriva, como se suas vidas não tivessem motivo. E o pior: desconhecem até mesmo quais são os lados. Quando sabemos os lados, quer dizer que há escolhas e tentativas de superação humana e, assim, um melhoramento social. Quando não enxergamos mais os lados, caímos num relativismo vazio, onde nada tem sentido e tudo se torna permitido. Se tudo pode, a recíproca também é válida, ou seja, também nada é possivel. O que é isso? Niilismo. Se você não se posiciona, não toma um lado, algo por lutar, que envolva um destino humano, e não meramente uma satisfação pessoal, você se torna um niilista passivo. E na falta de um sentido imanente, buscamos um sentido metafísico, ou seja, Deus. Percebes como igrejas e botecos estão se proliferando na mesma velocidade? — disse, com um riso no canto da boca. — Mas Deus está morto há um século pelo menos, embora ainda seja muito procurado em Sua cova. Rogério Skylab diz que a sepultura é a vontade do morto de não ser esquecido... Enfim, e há um século vivenciamos esse Nada, por isso, a barbárie em que nos encontramos atualmente, em todos os campos da sociedade, seja no plano ético, político ou estético. O que o pensamento humano e a obra de arte representam, hoje, senão, uma pobreza geral de espírito? E mais, a maioria diz, descaradamente, “não tenho um lado porque estou do meu próprio lado”, numa atitude extremamente narcisista e co(nfo)rtante. Que pilhéria! Pois não existe “eu estou do meu lado” quando você está irremediavelmente jogado no mundo, ou, imitando Heidegger, quando “o homem é um ser no mundo”. Antes do Ser, está a política, Guattari dizia. Então, por mais que eu diga, “Ah, estou do meu lado”, na verdade, nos colocamos dentro da linguagem da Situação ou da Oposição, dependendo da perspectiva dominante. Sempre estamos posicionados, vinculados a uma ideologia. Mesmo quando optamos pela resignação acerca da realidade. E esse conformismo talvez seja sinal de que precisemos, urgentemente, inventar outras formas de resistência, que respondam com mais precisão aos problemas do nosso tempo.


— De fato, Cazuza foi brilhante quando disse, ao fim da ditadura, “meu partido é um coração partido... E aquele garoto que ia mudar o mundo agora assiste a tudo em cima do muro..." — cantei com entusiasmo. Naquela época, durante a ditadura, tínhamos um inimigo concreto, um alvo certo, os militares, mas e agora? Hoje, parece que os inimigos se multiplicaram e tornaram-se invisíveis. Hoje, eles são muitos e estão escondidos por toda parte. O homem não é mais senhor nem mesmo dentro de sua própria casa. Até nosso inconsciente, às vezes me pergunto, não poderia também ser um inimigo em potencial? Nesse instante começou a chover. Os estudantes, deslumbrados com o jogo, pegaram as mesas junto com as cadeiras e colocaram-nas debaixo de uma marquise, onde não molhava. Como já estávamos embriagados, não arredamos o pé dali. Se quiséssemos nos proteger da chuva, teríamos que nos juntar aos estudantes. Sendo assim, tomamos, num só tempo, as duas águas. Carlos e eu, como Raul Seixas, já tínhamos perdido o medo. Dias depois, é claro, peguei um forte resfriado e quase morri. Não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos.


— Quando um alcoólatra bebe, sua intenção é sempre o penúltimo copo — disse a ele. — Pois, o último copo jamais seria de sua consciência, posto que estaria morto. Seguindo esse raciocínio, como pode o homem perder seu tempo pensando na morte e temê-la se jamais irá conhecê-la? Todo dia morremos um pouco, é verdade, entretanto, a minha própria morte, nunca terei ciência. Ela será sempre indiferente à minha pessoa e eu, da mesma forma, deveria também ser indiferente a ela. — Carlos acendeu outro charuto com ímpar ciência. — Por outro lado, repare, qual seria nossa única certeza, senão, a ideia da morte? Ora, se isso procede, se temos certeza de que vamos morrer, então, vamos encarar a existência com vigor e regozijo, sem medo, já que a noção exata da morte nos dá segurança. Portanto, se já temos essa primeira garantia, “vamos morrer um dia”, isso deveria nos trazer conforto por se tratar de uma certeza absoluta.


Carlos limpou os óculos e bebeu mais e mais. E mais e mais eu bebia. Carlos perguntou-me se gostaria de tomar uma "cervejinha", disse que não, só vodka, nada de misturas, pois tinha que trabalhar cedo no dia seguinte — esse disparate foi minha melhor piada, em anos. Depois desse episódio, fiz como Zeca Baleiro, na música, “Eu despedi meu patrão”. Salário mínimo é um pleonasmo, pensava constantemente! Bebíamos somente daquela aguinha oriental, por uma questão de honra e postura. Ele disse assim, olhando precipitadamente para o nada, quando pude, então, perceber a insânia nos seus olhos.


— Quase tudo é uma questão de linguagem... e, esta, é quem verdadeiramente constrói realidades. — voltando à conversa, disse — Desculpe-me, jovem, como estavas dizendo...


— Antes, quando ouvia muito Punk-rock, tinha imensa ojeriza aos metaleiros. Para que você entenda aonde quero chegar, Carlos, vou me utilizar do mesmo argumento que outrora usava. Um metaleiro, todo de preto, que simbolicamente representa uma contravenção, diz-se anticristo. Usa até um crucifixo de ponta cabeça e louva ao Diabo. E, assim, acredita estar sendo subversivo e crítico da cultura cristã. Quando Nietzsche diz que “jamais nos livraremos de Deus, posto que cremos ainda na gramática”, logo, tudo se esclarece. Os adoradores do Cão, do Cramunhão, do Beiçudo, do Coisa-Ruim, do Rabudo, do Tinhoso, do Capeta, do Demônio, do bom e velho pai do rock, enfim, do Diabo, não sacam que isso é tão-somente uma questão de linguagem. Eles ainda pensam em termos binários. Como? Aquele que adora o “anjo caído” é um cristão dissimulado que só afirma mais ainda o cristianismo, visto que a figura do diabo só existe na mitologia cristã. Sair de um extremo e caminhar para outro, nesse caso, em si, não muda nada, visto que ambos, o deus e o diabo, estão inseridos numa mesma linha de pensamento. Da mesma forma, essas cotas para Negros, em universidades... Uma palhaçada de extremo mau gosto, não acha?!


— Pois é, um argumento que só afirma mais ainda a soberania do homem branco — disse, Carlos, doutoralmente. — “Tudo bem”, diz o discurso dominante, “nós, os Brancos, deixamos os negros entrarem nas universidades sob a condição de cotas”, que, na verdade é apenas um paliativo, uma esmola, um engodo, que mascaram o verdadeiro problema. O verdadeiro problema é: ao invés de brigarmos por igualdades, tínhamos de lutar por diferenças. Nietzsche dizia que a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos. A diferença é a verdadeira linguagem da esquerda como resistência.


Ele ficou emocionado nesse instante, pois viera à memória a imagem de Jeanne Marie, uma antiga parceira de militância e seu grande amor. Marie nascera do outro lado do equador, em Caiena, mas Carlos a conhecera durante os protestos de 68, na França. Sua tese de doutorado, na Sorbonne, havia sido sobre um “Feminismo da Diferença”, com base nos estudos de esquizo-análise e nos escritos de Esther Vilar, Carol Gilligan e Camile Paglia. Agora, morava em sua cidade natal, cuidando da jovem Gabrielle, que sonha um dia em ser baixista de uma banda feminina de punk-rock, porém, underground. "Umas bochechas lindas... uma cútiz tão clara, que parece desbotada... sua palidez contrasta formidavelmente com seus belos olhos e cabelos negros... é bastante esperta, parecida com a mãe... e bastante atrevida como eu quando era jovem", ele dizia, pegando a outra garrafa de vodka, no embornal. "Mas, no fundo, apesar dessas semelhanças, que, na verdade, são apenas um anseio de identidade, Gabi tem suas singularidades... ela é muito debochada, com bastante humor, por exemplo, e, isso, não sei a quem puxou!", exclamou, pensativo. Quando Carlos visitava Marie, uma vez por ano, e via a menina crescendo, o amor entre eles logo renascia. Iriam se amar pelo resto da vida, sem dúvida, embora, optassem por viver suas vidas, separados.


— Jeanne odeia esse feminismo de araque, esse feminismo patriarcal, que, segundo ela, trata-se de um machismo às avessas, afirmando ainda mais a linguagem dominante, onde subordina-se aos interesses e imperativos da dominação para se eternizar no poder como a vontade do mesmo – à semelhança de um escravo que se torna poderoso mas que não se inventa como senhor. Como sinto saudades do seu raciocínio osmótico. Somos tão parecidos que discordamos em quase de tudo... brigamos quase sempre... mas ela sempre me perdoa. — riu-se, com uma piscadela. —  Sua pele é como uma fruta exótica, da Amazônia, entre o branco e o negro, os lábios são carnudos, de um vermelho acinzentado... as mãos macias... e os dedos compridos, como se fosse pianista. Possui um longo cabelo bem liso e olhos castanhos. Adoro olhá-la de óculos enquanto lê — disse, agora, com lágrimas nos olhos. — Nunca casamos por uma questão de temperamento. “As mulheres, assim como toda minoria, os negros, os índios, enfim... ao invés de buscarem igualdades, quaisquer que sejam elas, sociais, econômicas, ou políticas, deveriam expor e buscar as diferenças, que são claras. Não que biologia seja destino, mas, a interação, biologia e cultura, produz destino... como uma natureza social que produz diferenças", ela me diz, entende?!


— Sim. Mas essa própria noção de diferença, eu a percebo muito arriscada, pois, no fundo, quase todo mundo confunde. Hoje, quando vejo a mídia dizer “vamos respeitar as diferenças”, aquilo me soa como um profundo engodo. Na verdade, está sendo dito isto, “respeitem também as diferenças do opressor e da dominância”, porque nos encontramos no momento onde tudo pode, até mesmo a diferença daquele que oprime. "É isso aí, Coca-Cola e viva as diferenças", lembrei-me desse comercial contemporâneo. A Diferença, grosso modo, é dizer que não devemos aceitar qualquer forma de opressão e manutenção da ordem vigente, a fim de criarmos outras maneiras de viver a vida. A diferença verdadeira é um sinal de beatitude e graça, que quer trazer à vida uma novidade e uma suavidade, e não, um congelamento da realidade, como querem os poderes estabelecidos.


Mais uma vez, havia entre nós dois um bom diálogo, porque ali não discutíamos um gosto particular. Odeio opinião, cada um tem a sua. Uma boa conversa, como aquela, não era uma discussão pessoal, um assunto envolvendo o pronome "eu" e seus derivados, mas dois pensamentos que olhavam um destino e uma coletividade. Quando as pessoas começam a proferir suas opiniões perto de mim, "eu acho isso, eu acho aquilo", fico logo enjoado e impaciente. Saio de perto dizendo cinicamente, “você está certo, fui!”. As pessoas têm uma necessidade enorme de dizer o que pensam, como se seus pensamentos íntimos fossem necessários ao mundo, por vaidade ou hábito, sei lá! No filme “Clube da Luta”, Tyler Durden diz mais ou menos isto, “esqueça que você é especial, você é a mesma matéria orgânica podre como todo mundo”. Ou seja, uma luta verdadeira é sempre cósmica e universal, sem pronomes na primeira pessoa. Hoje, cada um só pensa no seu. Perdemos, no mundo moderno, a fé que os povos antigos possuíam, quando lutavam em nome de uma raça. Repare, por exemplo, os artistas de hoje. Eles não se preocupam mais com a função primeira da arte, que é criar outras percepções da realidade e, assim, novos modos de vida; querem somente o sucesso fácil, o glamour e o reconhecimento rápido e seguro do olhar alheio. Zé Geraldo, na música “Tô Zerado”, canta que “é feliz por não ter mais a ilusão de aparecer nos programas do Gugu e do Faustão”, que foda! Quem conhece o mínimo de arte sabe que os grandes gênios passaram longe disso. A Plebe Rude, de maneira irreverente, canta sobre essa ambição na música “Minha Renda”. Fazer da arte um motivo para se ter fama me parece um profundo desrespeito, já que, como artista, a ideia é tão-somente criar. A arte não nos pertence, não somos especiais. A arte é um meio para a revolução e melhoramento do pensamento humano. Se você quer ganhar dinheiro, faça outra coisa, seja funcionário público, jogue na mega-sena, ou roube um Banco. Por isso, talvez, a maioria dos grandes gênios tenha vivido uma vida de abnegações. O próprio Sartre recusou o prêmio Nobel de literatura pois dizia que se assim o fizesse estaria cedendo sua liberdade a outros; além do mais, nenhuma instituição pode julgar a obra de um verdadeiro pensador... Mais uma vez, quem seria Kafka se sua obra não fosse salva pelo seu amigo Max Brod, da fogueira? Quer dizer, nenhuma pessoa é essencial ao mundo. O mundo vai sobreviver com ou sem a gente. O que cada existência pessoal significa diante da imensidão misteriosa do universo? O problema, hoje, é que não fazemos mais sacrifícios em nome de algo maior, como fizeram nossos antecessores. Sem dor e sacrifício coletivos a humanidade jamais teria chegado até aqui. Carlos bebeu mais um bocado e disse:


— A questão é saber quais os lados e de que lado nós estamos? E os lados são estes: Dominância ou Resistência. A maioria prefere a dominância porque passa uma ilusão de poder, e, com isso, uma fantasia maior de segurança. Mas é um poder vazio, uma falso domínio, porque não visa à diferença, tornando a vida pesadamente reduzida e triste. A resistência é uma minoria, claro, onde não há garantias, mas somente possibilidades. Por isso, é o lado que me dá mais prazer e sentido em relação ao futuro, visto que nos dá ânimo com o fim de que algo possa ser inventado. Se há angústias e incertezas, como disseste, veja isso como potência e riqueza, já que o futuro se põe em aberto para criarmos outras realidades. De fato, o preço da liberdade é o mistério. Outra pergunta: Qual posicionamento deixa a vida mais alegre? Qual lado permite à vida seguir seu verdadeiro curso de mudança e beatitude? Será a Direita-dominante, que quer sempre fixar uma realidade para todos nós, um padrão, fomentando o próprio poder, ou, o outro lado, a verdadeira esquerda enquanto resistência, que procura novas formas de vida, improvisações? Só a resistência nos permite quebrar essa dicotomia do pensamento e da linguagem, que tanto empobrece a vida.


Um daqueles estudantes fascinados, que assistia ao jogo, foi me cumprimentar, no final da partida. Trajava uma daquelas camisas com estampa do Che Guevara. Tinha cabelos cuidadosamente desarrumados, uma barba por fazer, sandálias havaianas, corpo todo tatuado e piercings, eu acho, até no olho do... Cuidado, um típico estudante universitário! Queria trocar uma ideia comigo, a respeito de sei lá o quê, mas eu disse, sem pestanejar, que preferia continuar com minhas próprias ideias a trocar com ele, pois, com certeza, eu sairia perdendo: "— Eu queria propor-lhe uma troca de idéias... — Deus me livre!", essa frase de Mario Quintana é genial! “Quanto ficou o jogo?”, disse. Ele respondeu que a "pelada" tinha empatado. “E você, torceu pra quem?”, perguntei sem muito interesse na resposta. Ele disse que não gostava da seleção brasileira porque a maioria dos jogadores atuava fora do país - também concordei - e que odiava os Estados Unidos porque era comunista. Então, mandou um daqueles argumentos, de cima do muro, como qualquer outro atual, “torci pelo empate", e de fato, o jogo terminara 0 x 0. Eu perguntei, "pra quem?". Ele se retirou. O leitor pode perguntar, "torcer pelo empate não seria também tomar uma posição"? Pode ser, mas às vezes penso que, dependendo das circunstâncias, essa atitude seria mais um ato de ma-fé. Tipo: quando alguém vota Nulo, mesmo que essa opção vença as eleições, jamais poderá assumir a presidência e governar o país. Mas ainda não estou tão certo disso. Carlos arrematou:


— Veja, PT ou PSDB, ainda assim, pertencem a uma mesma linguagem, que, em si, não diferem nada um do outro. Dizer que PT é esquerda e PSDB, direita, é só uma maneira de dar nome aos bois. — disse Carlos, agora, pedindo uns torresmos. — Se quem está do lado do Poder apresenta-se como dominância, então, quem estiver lá, será da Direita, que, como linguagem, representa a maioria. A grande questão atual é: o que é a esquerda? Dito de outro modo, quem são, na verdade, os representantes da esquerda, no Brasil e no mundo? A esquerda, como linguagem, deveria ser uma resistência, antes de tudo, àquilo que verdadeiramente nos oprime.


— Se há poder tem de haver resistência, terceira lei de Newton. E ninguém exerce poder impunemente e nem é apenas passivo nas relações de poder. — disse, querendo mostrar perspicácia.


Carlos pediu um prato de feijoada. Eu aceitei sem culpa quando ele me ofereceu outro. A chuva havia terminado. Os estudantes pegaram suas coisas e foram em direção ao ponto. Mais uma vez, saíram de seus lugares e partiram de volta pra casa, onde suas camas macias os aguardavam. O trânsito estava bem mais calmo e trafegável. Carlos continuava:


— A esquerda nunca pode ser maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe a existência de um padrão, de um rebanho. Até quando se vota, não é apenas a maior quantidade que vota em favor de determinada coisa... não é só isso... há toda uma linguagem envolvida. Já a esquerda, pensa sempre a minoria, por exemplo, a mulher, o negro, o índio, o homossexual, a criança, o velho... É a instância desarticulada do poder. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem-branco-cidadão-adulto-civilizado-heterossexual-macho. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. E, repare, toda a cultura ocidental se baseia nessa imagem. A moral, as leis, a religião - o Cristo, de olhos azuis -, os costumes etc..


— Tô ligado! — exclamei, com entusiasmo.


— E ainda, os poderes estabelecidos não podem combater diretamente a verdadeira esquerda, que só pode ser um saber marginal, a princípio; em outras palavras, um novo saber ainda não nomeado e codificado pelo sistema. As ferramentas do poder, por isso, não conseguem delimitar as linhas de fuga dessa novidade. O que representam a pirataria no corpus social e o vírus no corpus biológico? Como o poder age, então? Trata de assimilar e apreender o mais rápido possível os desenhos da resistência, ao invés de lutar contra...

— Não se pode com eles, então junte-se a eles...

Como aconteceu com o punk, quando as lojas começaram a vender calças rasgadas e as gravadoras passaram a produzir bandas nesse estilo. Ou seja, essa imagem sensata da razão dominante, vinculada ao significante do homem, adulto, macho, cidadão europeu, age sugando esse novo saber e só assim consegue "vencê-lo". — O dono do bar, bastante estressado, queria fechar seu estabelecimento, dizendo-nos, "Bora, bora... vou dormir e deixar vocês dois aí". Mas, continuávamos no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, distantes dali, embriagados de vodka e pensamentos.


— Pode-se dizer, então, que a maioria nunca é ninguém, justamente, por querer sempre estar do lado da dominância, que é vazia... — eu disse, tragando mais um pouco do "mel do melhor".


— Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc.. As mulheres também vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Todos os processos revolucionários, saberes marginais e a verdadeira obra de arte são minorias. Todas as revoluções são minoritárias. A esquerda é o conjunto dos processos minoritários. A maioria é ninguém e a minoria é todo mundo, percebes?


— Isso! — gritei, enquanto enchia meu copo novamente. — Temos então que tomar o poder, fazer da esquerda a própria direita.


— Não, mil vezes, não! Assim, faríamos a mesma história, que disseste sobre os metaleiros... Estaríamos sendo face da mesma moeda. Como resistentes, temos que estar sempre à margem. Tomar o poder seria fazer parte e corroborar com toda essa sujeira da linguagem dominante. Ser de esquerda é isso: saber que na minoria é que acontece o fenômeno da criação. Criar outras percepções da realidade a fim de que sejam produzidos novos modos de vida. Essas novas formas, como ainda não foram assimiladas pelo poder estabelecido, só podem ser minorias. Além disso, a resistência serve, no mínimo, como compensação de forças. Ação e reação, lembra?


— Tudo bem, Carlos, mas, às vezes, penso se esse discurso que você se utiliza não seria moralista?


— Não. Ético, sim. A linguagem da moral, entenda, por estar dentro de um pensamento metafísico, é eterna. Basta olharmos os 10 mandamentos, que, para muitos, funcionam até hoje. Quando digo Dominância ou Resistência faço-o fora do plano metafísico e dentro de um pensamento imanente, que não se permite eterno. Ou seja, as dominâncias e as resistências não são absolutas. Que isso quer dizer? Quer dizer que cada momento histórico produz novas relações de poder. Outrora, o movimento punk era resistência. Hoje, não mais, embora, sirva de exemplo para criações de outras formas de resistências.


— Enteeeeeeendo — disse, já com sono — mas, sinceramente, você acredita numa revolução, hoje?


— Hoje, não vejo uma revolução que não seja micro-política. Ou seja, ao invés de tomarmos o poder, em Brasília, devemos começar com atitudes mínimas dentro de nossa própria casa, pois, isto irá servir de exemplo a outras relações. A máxima da vovó: costume de casa vai à praça. Por isso, é saudável estarmos sempre atentos às formas de dominância que são produzidas em cada contexto e, assim, criarmos novas formas de resistências. Penso também a arte como uma arma política. Entendo qualquer manifesto artístico como maneira de se fazer micro-política, agindo nos pequenos espaços. Em outras palavras, a questão já não é mais mudar o mundo por meio duma ação certeira, mirando um inimigo apenas, como quis a tradição. Dessa maneira, o poder se mantém como tal, só mudando seu detentor. No início da conversa, disseste que não tínhamos apenas um inimigo e que, este, parecia ter se multiplicado. Tudo bem. Hoje, a dominância apresenta poderes múltiplos, como também há várias maneiras de resistências, por isso, a ideia de agirmos na esfera local. Se o poder está em toda parte, a ação, então, torna-se plural, gratuita e imediata. O termo “revolução cotidiana” é bastante comum atualmente, pois significa dizer que a mudança é aqui e agora, nas práticas do dia a dia, ao contrário daqueles que enxergavam a revolução sempre adiante, como uma meta a ser alcançada; ela está, na verdade, em nossas próprias relações sociais, econômicas, políticas, familiares etc.. O poder não é algo que “uns possuem” e “outros não”. A esquerda como resistência também possui um certo tipo de poder, mas não um poder que quer reduzir a vida, por isso, chamamos potência. A potência quer sempre mais vida. Mas isso é só uma encheção de lingüística. O que importa é saber que essas forças são imanente às relações humanas, como algo que se pratica ou se sofre... Mas, essa resistência, essa revolução micro-política é dizer que devemos iniciar a mudança, sobretudo, pelo pensamento e, assim, como extensão, a linguagem...


Carlos bocejava compassadamente. Quando demos por si, o bar havia fechado. Fui mijar, então, na porta de uma igreja evangélica, que ficava às escuras, do outro lado da rua. Na volta, Carlos roncava como se estivesse no sofá de casa. Ir a um boteco, beber mais do que qualquer um, sem um tostão furado e sair girando mais do que todo o mundo, já estava me deixando um cabra nojento e mal acostumado. A madrugada ia alta, e como não havia mais ônibus nos terminais, aproveitei o embalo e deitei a cabeça sobre a mesa. Será que o dono do estabelecimento esquecera de nos cobrar os torresmos? E a feijoada? Não acredito no sobrenatural. De todo modo, ficamos ali sentados, do lado do bar, eu e Carlos, adormecidos e de prontidão, aguardando a manhã seguinte. Afinal, faltava-nos acertar umas contas.