quarta-feira, 20 de abril de 2011

1 3° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O ETERNO TRANSTORNO
(...) é como se o "A" se olhasse no espelho 'N' e se visse a si mesmo refletido do outro lado, a sua própria face "A".

Chovia bastante naqueles dias e como um raio Ana passou pela portaria sem sequer notar o que lhe dissera o porteiro, “Seu pai me pediu pra te avisar que...”. Eureca! Acabara de ter uma magnífica idéia sobre um projeto de pesquisa; uma luz animava sua imaginação como a chave que abre as misteriosas portas do conhecimento. É preciso cuidar bem dessas preciosas centelhas, “reter e rever para prever e reter”, dizia a si mesma, pois a inspiração soa como caos nos “becos escuros da memória, velha cidade de traições”. É possível, entretanto, recuperar, mesmo apesar dos contratempos, ao menos parcialmente, os lampejos perdidos, já que todo acontecimento, quando irrompe, recorre à memória de alguma forma. A nota é átona à sua pausa!


Com passos firmes e molhados, olhava sempre além daquele instante. Chamou o elevador. Sete, seis, cinco, quatro e nada. Sua raiva aumentava à medida que o elevador não se aproximava. (...) dois, um: “Faltou luz”, alguém disse. Subiu a escada feito um foguete, alguém a cumprimentou, ela apenas resmungou com o coração célere, terceiro andar, tocou a campainha uma, duas, três, quatro e nada. Respirou repetidas vezes. (...) cinco, seis, sete e ninguém atendia. Quanto mais insistia menos paciência tinha. “A droga da gorda já foi embora”, satirizou, referindo-se à empregada. “A chave?!”, pensou então. Não podia desperdiçar aquele momento único onde só os seres elevados, como os artistas, compreendem, quando no peito bate um pensamento verdadeiro: "ame o poema". Desceu tudo de novo, com mais pressa ainda e como uma arara perguntou ao porteiro “Acorde, Pedroca!, a chave de casa tá aí?”. E novamente fez o mesmo percurso até virar a chave e senti-la quebrar na própria mão. Erro comum ocorre.


Experimentava naquele dia o Eterno Transtorno. Voltou à portaria e falou com o porteiro que providenciou logo um chaveiro. Algum tempo depois, enfim, o retorno. Despiu-se, tênis de um lado, camisa do outro. Tomou um banho rápido, fritou um ovo e após a sopa, de repente, um barulho, “teve torcida gritando quando a luz voltou”. Ligou o computador e, enquanto olhava para o monitor, via seu rosto refletido na luz azul da tela, em perfeita simetria. Olhou a caixa de e-mails e viu a seguinte frase, que a deixou um pouco confusa:
          
Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos


Concentrada naquela misteriosa expressão, que parecia movimentar-se pra lá e pra cá, esqueceu-se da magnífica idéia sobre seu trabalho. “Ahhhhh!!!!!!”. Chorou de tanta raiva que socou as paredes num ato idiota. Sabia, assim mesmo, que até o poeta erra, e, de preferência, “duas três quatro cinco seis até esse erro aprender que só o erro tem vez”. Ah!, na manhã seguinte, talvez, voltasse a lembrar. Mas hoje, a noite estava fria, e sua cabeça quente.