quarta-feira, 20 de abril de 2011

8° ETAPA DE DESTILAÇÃO

LÉO E BIA

A anima (termo em latim para alma) constitui o lado feminino no homem; o animus (termo em latim para mente ou espírito) constitui o lado masculino na psique da mulher. Ambos os sexos possuem aspectos do sexo oposto, não só biologicamente, através dos hormônios e genes, como também, psicologicamente através de sentimentos e atitudes. O homem, quando se afeiçoa por uma mulher, está projetando a imagem da mulher que ele tem internalizado.        C. Jung



Abriu o chuveiro, passou xampu e condicionador nos cabelos, massageando-os suavemente. Enxaguou e repetiu a operação. Afinal, uma cabeleira sedosa e cheia de brilho é outra coisa. Meia hora depois, “Anda loooogo”, ecoou uma voz de fora do banheiro, como um bumerangue. Enxugou-se, então, passou hidratante na pele e aparou as unhas. Colocou seu roupão, pegou o creme dental e, minuciosamente, pôs na escova. Limpou as laterais, na parte superior e inferior; a parte frontal foi com extremo cuidado, pois sabia do sorriso bonito que seus dentes lhe proporcionavam e não podia decepcionar àqueles a quem gostaria de mostrá-los. Em seguida, olho no olho, diante do espelho, passou, dente por dente, o fio entre eles. Quando saiu, ouviu de sua mãe, “Filho, assim vou me atrasar!”. Leonardo abriu a porta e saiu sorrindo, timidamente, beijando a mãe, no rosto.


Enquanto isso na cidade grande virou num só gole um uísque duplo apagou o cigarro ligou a guitarra no volume máximo e cantou “... eu fico sonhando em ser astronauta, eu olho pra lua, eu sinto sua falta”. Apesar da festa, o público parecia um tanto indiferente. Quando saiu beijou um carinha com quem ficava de quando em vez, pegou sua moto - sequer havia colocado o capacete - e vazou. Na rua só o berro hostil do silêncio acompanhou Bianca.


Léo fechou a porta do quarto e colocou o pijama. Era bastante lúcido e lúdico. Do lado da cama, uma agenda onde anotava alguns versos:

Dizem: Lua e Flor simbolizam o amor
Mas, Lua e Estrela como dizê-las,
Se O Sol e A Lua iluminam a rua,
Como, A Lua e Eu, uma criação de Deus?

Olhou pela janela e viu a lua majestosa e indecifravelmente calada, reservada e afastada nos seus pensamentos. Encantou-se mais uma vez, respirando o ar bucólico das cidadezinhas do interior. Notou a igreja e um casal de velhinhos que passeava de mãos dadas. Na praça, uma pequena festa da vizinhança tomava conta daquelas pessoas, que trocavam bastante afeto entre si. Antes de dormir, pegou seus óculos, limpou as lentes levemente, e leu mais um pouco das páginas sagradas da Bíblia. A mãe bateu na porta, dizendo que só iria voltar mais tarde, “boa noite, filho”, “Booa noooite, mãezinha!”. Horas depois, dormiu um sono perfeito. 


Bia entrou em casa passou pelo pai-bêbado no sofá “Boa noite, coroa!”. Comeu qualquer coisa e assistiu a um daqueles seriados de fim de noite. No seu quarto havia uma caixa preta onde guardava alguns objetos sem nenhum critério e, jogado num canto, um velho violão. Pegou um cd solo de um integrante dos Mutantes e pôs pra tocar “... não gosto do pessoal da NASA, cadê meu disco voador...”. Esqueceu-se de escovar os dentes e feito um míssil caiu na cama, de roupa e tudo. Tentou ler mas estava morta – sempre se culpava por não ter tempo para os livros. Enfim, já havia apagado.


Coincidência ou não, o fato é que sonharam o mesmo sonho naquela noite Léo e Bia sem nunca terem se encontrado. Nesse caso, Jung talvez dissesse ser coisa do “Inconsciente Coletivo”. Posso contar apenas o que está à superfície de minha memória, claro, pois é sempre difícil alcançar um sonho nas profundezas da consciência e abarcá-lo na sua totalidade, como sabemos. A Lua Curiosa, de longe, iluminava suas camas, parecendo observá-los:


Um lobo de pêlo vermelho vagava soturno pelo centro da cidade. Procurava alguma coisa. Uivava desesperadamente lua... lua... lua... lua... Virou-se pra si mesmo e perguntou:

— Qual lua procuro se ela se divide em outras mais? Costuma-se dizer que ela é de lua — disse, rindo-se de si próprio.

De imediato, soube que o que procurava não tinha um corpo fixo e um espírito imutável; mas que nosso satélite natural possuía momentos mediante seu relacionamento estabelecido com a Terra, o Sol e o observador. Alumiando as idéias, viu que não era noite de Lua cheia, nem minguante, nova ou crescente. Ele olhou para cima, pois gostaria dela como fosse, até mesmo se fosse a Lua de São Jorge ou uma Lua de Algodão. Percebeu, no entanto, que tinha algo esquisito naquela noite, pois não havia nada no céu. “Cadê a lua?”. O fato é que procurava algo, por assim dizer, bem longínquo. Respirou fundo e para disfarçar o que pensava diante de si, notou:

— Sim, só se ama alguém de verdade quando se ama, antes, a si mesmo. Mas, sobretudo, só se ama verdadeiramente o próximo quando aprendemos a amar o distante. Meu instinto lupino diz ainda que o que está próximo é fácil demais, não nos causa surpresa, visto que é uma tentativa, às vezes, desesperada, por identidade. Portanto, alguma coisa sem novidades, valerá à pena? No entanto, algo incomum e, ao mesmo tempo, raro, como um delicioso estranhamento, não seria um sacrifício maravilhoso? Penso que só dilatamos nossa percepção e inteligência quando almejamos o distante, abrindo-nos para o inusitado e permitindo-nos à fantástica aventura da experimentação. E somente nesse inesperado atravessamento é que compreendemos a nós mesmos e ao mesmo tempo nos reconhecemos no outro.

E como uma consciência que se debruça sobre si mesma, disse:

— Eis o princípio do amor-próprio. Claro! Quando olhamos nossos sentimentos, fazemos apenas com um dos olhos, e olhamos apenas a parte nobre. Mas, cabe ao outro olho enxergar nossas próprias fraquezas e estranhezas, ou seja, aquilo que moralmente representa o ridículo em cada um nós. Sejamos inteiros! Pois, assim, aceitamos também as diferenças mais pusilânimes no outro e chegamos completos ao exercício da alteridade. Sabe aqueles sentimentos e emoções que estão longe daquilo que temos como certo, bom e belo? Pensemos numa imagem humana que nos parece vergonhosa, que temos horror em admitir. As lágrimas, por exemplo. Se me permito chorar, se aceito com honestidade e, até mesmo, com certa altivez, sem fingimento, aprendo a entender as lágrimas no outro também.

De fato, não iria encontrar nenhuma lua onde pensava, já que apenas seu coração poderia mostrar-lhe o caminho. O jovem lobo sentiu-se velho e acabado. Foi até um chafariz tentar saciar sua sede. Nesse instante, enquanto bebia, irrompeu diante de seus olhos, naquele espelho fluido, uma imagem luminosa mais ou menos como a lua. Era um daqueles lustres enormes refletidos na água. O lobo, então, viu, num amálgama jubiloso, a si mesmo e a face pálida da luz. Não era fácil distingui-los, o clarão e o lobo, naquela superfície líquida. No fim, a luz foi tão intensa que se misturou à imagem dele como num Banho de Lua.

Pobre lobo! Jamais poderia encontrar fora o que já estava dentro de si. Ele se esquecera da quinta fase da lua, a Lua Negra. Nesse período, de 3 a 4 noites, a lua fica invisível no céu, habitando o coração de cada um de nós, enchendo-nos de fé. Aquele que não acredita em si próprio não pode enxergá-la, porque está habituado a buscar a felicidade além de seu próprio corpo, esquecendo-se de si, onde se encontra a verdadeira luz. “Foi quando eu vi aquela lua passar”, disse a si mesmo, durante um terço da madrugada.

Como são iguais nas suas diferenças! Adorado como Febo, distribuidor da luz, o lobo representa o aspecto maternal associado à idéia da fecundidade; uma loba nutriu Rômulo e Remo, reza a lenda. A lua, em razão de seu crescimento e de seu curso rápido, também simboliza a fertilidade. O lobo ainda traz a idéia do inconsciente da personalidade; e a lua, neste sentido, está relacionada às profundezas do inconsciente, simbolizando as forças psíquicas poderosas que escapam ao controle consciente.

— Lua, Lua, Lua, Lua...



Entre a noite e o dia há o infinito. O sonho nasceu da vida e a vida nasceu de um sonho. O galo cantou as 4 e 30, e Bianca acordou pontualmente às seis. Não podia se atrasar pois o ônibus para capital só passava de hora em hora. Pegou as lentes de contato na ponta do dedo indicador da mão direita. Verificou se a lente estava do lado correto. Olhou fixamente para frente e abaixou a pálpebra inferior com o dedo médio da mão direita. Olhou para cima e colocou a lente cuidadosamente na parte inferior do olho. Olhou para baixo, piscou os olhos e soltou a pálpebra imediatamente. Fez movimentos circulares com o dedo indicador na pálpebra inferior posicionando a lente no centro do olho. Brincou um pouco, no vasto quintal de casa, atirando um bumerangue, com seu cachorro, que ficava perdidinho, girando, girando, girando... Havia pães, queijo, presunto, leite e chocolate em pó. Como não podia com açúcar nem gordura, preferiu comer apenas frutas. Adorava conversar sozinha, porque toda vez que tinha alguém por perto, ficava com vergonha de falar. Fazia questão de deixar as coisas sempre claras, era perfeccionista e adorava receber atenção. Despediu-se da mãe, que acabara de acordar, e foi para o ponto. No colégio, durante a aula de espanhol, enquanto relia as insólitas páginas do Quixote, de Cervantes, sentiu alguma coisa martelando sua cabeça, do tipo "La Bela Luna", sabia lá, não lembrava.


Leonardo acordou preguiçosamente atrasado com seu pai dando-lhe “Bom dia, filho, nem vi você chegar”. Seu rosto parecia uma "Lua Branca", de tão inchado. Colocou a primeira calça que viu pela frente e uma camisa toda amarrotada. Foi de sapatos trocados um preto e o outro marrom. Acendeu um cigarrinho e foi caminhando um pouco confuso - eu quero ser um Astronauta de Mármore quando crescer, pensou. Pegou sua moto e sumiu no horizonte. Durante o tráfego intenso daquela manhã, lembrara-se de ter esquecidos os óculos. Já no colégio, mexia com os colegas e cantarolava pelos corredores, “E dizem que bem me quer/ E eu triste boemio da rua/ Casei-me também com a lua/ Que ainda é a minha mulher... E a noite de luar já não tem luz/ Quem me abraça é a negra solidão”. Queria nem saber das aulas de literatura, dizia, "cansei de mentira... é tudo ficção mesmo!", e gargalhava. Sabia que sonhara algo estranho mas nada lhe vinha à memória, "Dai-me um Luar", disse, tentando se lembrar.


No centro da cidade, após as aulas, quando voltava pra casa, à noite, Bia pegou um táxi, que parou na faixa, esperando pela travessia dos pedestres. Na rádio tocavam variações sobre um mesmo tema. O taxista, lunático, já mudava de marcha quando o sinal abriu, e Léo, distraído, no mundo da lua, surgiu do nada na frente do carro, que freou bruscamente parando em cima dele. Ela olhou assustada através do vidro do carro e pode notar o rosto de Léo concomitantemente ao seu próprio reflexo. Era difícil distinguir quem realmente estava sendo refletido naquele momento. Ele levantou a viseira do capacete pra verificar se havia atropelado alguém, olhando nos olhos dela. Leonardo, então, viu novamente sua imagem refletida nos olhos de Bianca, como Raios de Lua. “Sim, agora me lembro!”, disseram pra si mesmos, os dois. Pareciam estar em Em Plena Lua de Mel naquele acontecimento simbiótico. Nessa troca de olhares, ela sentiu que já se conheciam. Ele sentiu o mesmo, mas pensou, pensou, pensou e ficou na dúvida. Começava a tocar uma outra canção na rádio, dessa vez, do Oswaldo Montenegro, "... Qualquer maneira de amar varia ... Cuidar de amor exige mestria", quando o veículo e a moto partiram. Naquela noite, haveria Festa na Lua.