quarta-feira, 20 de abril de 2011

2° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O FANTASMA
O objetivo da divisão não é, pois, em absoluto, dividir um genero em espécies, mas, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autêntico do inautentico (LS, 1974, p. 260)


Embora, a tarefa principal da filosofia do futuro seja reverter, como disse Nietzsche, o platonismo e seu legado (a lógica aristotélica, o cristianismo e quase toda a cultura ocidental), devemos pensar um pouco melhor o próprio Platão, alvo específico do autor de Zarathustra. Antes de pensarmos uma verdadeira resistência do pensamento e da linguagem, precisamos conhecer mais intimamente as ideias platônicas.


Já conhecemos sua divisão em essência e aparência, em inteligível e sensível, em original e cópia, e como sua simples dualidade, sua máquina binária, iria moldar para sempre nossa forma de ver o mundo. Se no Fédon e no Político, ele define bem essa hierarquia, no Sofista, ele vai deixar pistas sobre uma outra espécie de imagem, assim como a cópia, mas rechaçada pela tradicional história da filosofia: o simulacro, ou o próprio fantasma. Pois, o fantasma é aquele que torna impossível a fixidez de valores, inviabilizando qualquer tipo de determinação. Longe disso, oé colocado em jogo "pensamentos nômades e anarquias coroadas".

Se Ideia é essência de tudo e Copia, o fiel espelho dessa Ideia, o simulacro seria, como se diz, uma Cópia mal feita, ou quase cópia da Cópia, porque não refletiria, como a própria cópia, a semelhança, mas ao contrário, mostraria a dessemelhança. Isto é, não representaria um ícone justaposto à ideia. Apareceria, ao contrário, como desavença, assombração e incerteza; em outras palavras, como diferença. Haveria, então, entre Ideia-Cópia e simulacro uma alteração de natureza, ainda mais gritante do que Ideia e Cópia, visto que estas estariam, por assim dizer, num mesmo plano. A cópia é uma imagem dotada de semelhança e interior à Ideia, enquanto, o simulacro, uma imagem sem semelhança e exterior à Ideia. A Cópia é a semelhança exata da própria Ideia. Já o simulacro, um mais ou menos, como possibilidade, apenas simula, fingindo se parecer com a Ideia:


O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-se com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança, embora conservasse a imagem" (LS, 1974, p. 263).

E mais, após a queda, tornamo-nos simulacros, perdemos nossa existência moral para entrarmos numa existência estética, porém, de caráter demoníaco, fantasmagórico. Ou seja, o simulacro consegue quebrar a cumplicidade harmoniosa entre Ideia e Cópia, subverte a “ordem natural” das coisas, cometendo uma felonia. O simulacro se esquece do pacto central formulado pela ideia e pela cópia, subvertendo essa suposta “amizade” . A simulação fantasma é a amnésia mais pura possível.

A partir dessa vontade de semelhança entre Ideia e Cópia é que vão ser engendradas quase todo o pensamento ocidental, como exemplos, a Lógica de Aristóteles (pois é ele quem desdobra a representação como bem fundada e limitada), o Cristianismo, o Cogito cartesiano, a Dialética hegeliana, o Númen de Kant e a Psicanálise freudiana. Vamos entender como a Ideia e a Cópia de Platão fizeram ressonância no ocidente. Grosso modo falando, na gramática aristotélica, essa divisão dual é feita a partir de um sujeito, que faz a ação, e de um objeto, que a recebe; essa ideia não remeteria, também, à lingüística estrutural de Saussure? No Cristianismo, o paraíso - a eternidade - é a Ideia, enquanto que, a Cópia, somos nós, habitantes efêmeros desse mundo. Descartes, abrindo a modernidade, não descartou a Ideia do "Pensar" como forma ideal de existirmos, ao passo que, se não pensássemos, não existiríamos. A Dialética tradicional de Hegel procede de maneira dicotômica (tese + antítese = síntese). Em kant, o mundo Numênico é uma extensão, em outras palavras, da Ideia-Cópia, de Platão. Na Psicanálise tradicional, a Ideia é o modelo de saúde psíquica e a Cópia, qualquer forma de doença espiritual que se mostre como defasagem em relação à Ideia. Em suma, todas essas insinuações se formularam por meio de um modelo que requer uma representação e uma linguagem binária.

Mesmo tendo elaborado essas ideias, Platão já deixava para os pensadores do porvir, a noção, mesmo que solapada, do simulacro fantasma. Então, se ele dá prioridade naquele momento à Ideia e à Cópia, os estóicos, em seguida, vão tentar trazer à superfície o simulacro. Em ordem, a Ideia estaria acima e a Copia, como representação, logo embaixo. E mais embaixo ainda, o simulacro, esquecido pela tradição filosófica, mas retomado pelos estóicos, Nietzsche e pelos filósofos da diferença, como fonte da própria Amnésia. Para estes, a distinção não é mais da Ideia e da Cópia, mas das cópias e dos simulacros. A matéria do simulacro é retomada para contestar tanto a Ideia quanto a Cópia. Se até então valorizavam-se as profundidades (os Pré-socráticos) e as alturas (Platão), os estóicos vão dar primazia à superfície, à simulação, ao fingimento, a incerteza e ao paradoxo. “O mais profundo é a pele”, disse Paul Valéry. Outro pensador, Michel Tournier, diz:


(...) Estranho preconceito, contudo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superfície e que pretende que superficial signifique não de vasta dimensão, mas de pouca profundidade, enquanto que profundo significa ao contrário de grande profundidade e não de fraca superfície. E, entretanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor, ao que me parece, se é que pode ser medido, pela importância de sua superfície do que pelo grau de profundidade.


Assim, o simulacro não é, como as pessoas imaginam, uma falsa cópia, mas uma maneira de pôr em xeque as próprias noções de Ideia e cópia. O que o pensamento tradicional sempre quis foi impedir que subisse à superfície o fantasma, justamente, porque seria difícil impor-lhe limites, ordená-lo, nomeá-lo, torná-lo semelhante. Reverter o platonismo, montar uma máquina de guerra contra toda opressão do pensamento e da linguagem, contra essa vazia cultura ocidental (que só reduz a vida) é “fazer subir à superfície os simulacros, afirmar seus direitos entre a Ideia e a Cópia. O problema não concerne mais à distinção essência-aparência, ou modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação” (LS, 1974, p. 267). No mundo da diferença, a questão é a embriaguês de Dioníso: o eterno retorno do simulacro e do fantasma solitário e esquecido que anda dançando por aí feito criança, transbordando alegria. Por tudo o que foi dito, como resistentes o insistentes que somos, salve Platão e  seu  simulacro, salve o pensamento da diferença, mas sobretudo, o tempo de... o tempo... o tempo... o tempo de Aion.




  1. LS (Lógica do Sentido, Gilles Deleuze, 1974)