sexta-feira, 29 de abril de 2011

7° ETAPA DE DESTILAÇÃO

DE QUE LADO NÓS ESTAMOS? 
(1968 - O ANO QUE NÃO TERMINOU)
 
Ainda me restava mais uma aula. Nada pior numa quarta-feira à noite do que aula de Pedagogia. Ouvir um professor, que sequer acredita naquilo que diz, palestrar sobre educação, é opressivo! Esses professores são engraçados, sejam eles do ensino fundamental, médio ou superior, não percebem que essa educação funciona mais como lavagem cerebral do que qualquer outra coisa. Noutra "aula", de Barthes, este dizia que a linguagem é simplesmente fascista não porque nos impede de dizer, mas, antes, porque nos obriga a falar. Só lembrarmos a figura do padre ou do psicanalista. Aí, depois, vêm aquelas pessoas grunhindo sobre “liberdade de expressão”, só para legitimarem, na verdade, mais e mais as besteiras que pretendem dizer. A linguagem não é neutra, nem informativa: "a linguagem não é feita para que se acredite nela, mas para ser obedecida”, disse um outro filósofo francês. Quando um professor explica a sintaxe aos alunos, ele não está passando, inicialmente, informações, mas, ao contrário, mostra-lhes comandos e palavras de ordem, e, assim, faz com que seus pupilos produzam enunciados corretos, necessariamente segundo as significações dominantes. Por exemplo, quando digo 2 + 2 = 4, estou produzindo um diálogo ou um “imperativo categórico”? Por isso, preocupa-me bastante essa ideia, muito difundida na mídia, de que o Brasil precisa de educação. Que tipo de educação? Essa que aí está? Educar pra quem? E pra quê? Para instigar o desejo de criação ou para introjetar nos jovens mais uma vez a imagem dominante a fim de que reproduzam a ordem estabelecida? 


A educação actua essencialmente como um meio, que arruína a excepção em proveito da regra. Por sua vez, a cultura é essencialmente o meio de revirar o gosto contra a excepção, em proveito da mediania. (F.N., Vontade de Potência)


Pois bem, o tempo estava nublado, eu me sentia um porre, o estômago reclamava e a cabeça doía. Pra compensar a aula que acabara de matar, fui buscar uma corrente de ar numa nova “sala”, a “aula das dez”, no bar mais próximo, em frente à universidade. Preferi sentar-me do lado de cá, onde havia menos barulho, bem afastado do bando de estudantes que comemorava sua chegada àquela instituição de ensino. Queria ler um pouco de jornal, nem tanto pelo o que dizia, mas porque estava sozinho — e sem dinheiro, como de costume. Notei um homem mais velho, na faixa dos seus 65 anos, sentado perto de mim. Parecia um bonachão, com uma vasta cabeleira grisalha, uns óculos enferrujados e, de braços cruzados, apenas observava o burburinho à sua volta. Ele sorria como o gato de Alice, num sorriso sem riso, de quem já teve tudo nessa vida e, agora, só lhe restara, senão, a própria integridade. Bebia vodka, e eu também estava muito a fim de beber daquele néctar dos deuses, já que, àquela época, embriagava-me todos os dias do teor destilado de Crime e Castigo. Eu o olhava de lado, por cima do jornal. Desviei o olhar por um instante, ensimesmado, e quando voltei a olhá-lo, ele também me olhava. Tomei um susto, é claro, demonstrando um tímido nervosismo. E, como não tinha pensado em nada, perguntei meio atabalhoado, “Opa, tá gostando do jogo?!”. A seleção brasileira jogava contra os americanos debaixo de chuva, num perfeito futebol de várzea. Ele me falou que, apesar dos pesares, torcia pelo Brasil. Diante disso, não me restou outra alternativa, senão, arriscar, numa cara de pau já habituada — a sede era gritante — uma pergunta necessária, “Posso-me sentar contigo?”. Ele deu de ombros, mas assentiu com a cabeça, dizendo-me que, se eu lhe proporcionasse um papo legal, a fim de compensar aquela partida terrível e as pessoas dispensáveis daquele recinto, ele me deixaria ficar. E permaneci por muito tempo ao seu lado, como irá perceber o leitor, à medida que essas memórias forem narradas. Sentei-me, com o orgulho e a dignidade de um bon-vivant. Notei que, se continuasse falando de futebol, seria expulso da mesa no próximo passe errado do jogo, uma regra naquele campo encharcado. Como era graduado na escola da vida, vi dentro do seu embornal, que estava semi-aberto, mais uma garrafa de vodka e um monte de livros, dentre os quais, La Nausée, de Jean-Paul Sartre. “A hora é agora”, pensei.


— Desculpe-me, não sou sempre assim, mas não posso evitar, gosta de Sartre?


Ele tomou outro gole de sua bebida transparente e, surpreso com a pergunta, respondeu:


— Começaste bem, rapaz! Minha relação com a literatura francesa é longa. Sou ex-professor universitário, mas, hoje, vivo de minha aposentadoria. Lecionei literatura e filosofia em algumas universidades. Se quiseres entender melhor, escute-me com atenção.


— Todo ouvidos — disse-lhe, enchendo meu copo.


— Minha mãe nasceu em São Luís, no Maranhão. Filha de franceses, veio para o Espírito Santo com a família ainda jovem, onde conheceu meu pai, um típico operário alemão. Por minha vez, acabei nascendo no sul do estado, em Iconha. Meu pai era socialista, por isso, sugeriu que me chamasse Carlos Marques. Assim, além do português, entendo um pouco do germânico e do francês. Num curto período, quando estive na França, em maio de 68, fui um militante esquerdista. Ainda sou, mas de outra maneira. Naquela ocasião, conheci de vista pensadores como Foucault, Deleuze, e o próprio Sartre, que já estava bem velhinho. Este, aliás, dizia sempre que deveríamos ser totalmente intransigentes contra toda forma de opressão — vasculhou com sofreguidão sua bolsa e mostrou-me “A Náusea”, na versão original. — Depois, no mesmo ano, estive no Rio de Janeiro e em São Paulo, durante os movimentos estudantis.


E a partida rolava à solta enquanto os estudantes, completamente ébrios, deitavam e rolavam numa festa sem tamanho. Carlos me falou que, por influência da mãe, interessara-se por literatura, e do pai, a esquerda. Dizia ainda ser louco e possuir um sistema nervoso “antipático” aos tiranos. Os copos, molhados de vodka, seguiam seu roteiro austero.


— Tanto minha experiência em 68, como a própria literatura e filosofia, ensinaram-me duas coisas importantes. — tirou um estojo, onde havia charutos cubanos, acendeu um deles, oferecendo-me outro, aceitei de prontidão, embora não fume com tanta freqüência, só em ocasiões especiais, como aquela. — Primeiro, um organismo morre, mas uma boa ideia sempre perpetua, mesmo depois de muito tempo; e, mesmo apesar dos homens de pouca fé, uma boa ideia, por fim, pode mudar o mundo. E, segundo, não devemos temer o medo, mas ao contrário, é o medo quem deve nos temer. Você só se torna completamente livre quando não sente mais medo. O medo é a arma mais eficaz de um governo e, através dele, o estado consegue nos disciplinar, vigiar e punir... e controlar — Levantou-se em direção ao banheiro, só que, antes, pegou uma caneta e anotou uns versos, num guardanapo todo amarrotado, dizendo-me que era um presente pela minha generosa atenção. Embora o papo estivesse agradável, meu desejo mesmo era beber bastante aquela noite, até o penúltimo copo. E ele sabia que seria à sua custa. Muito depois, quando fui embora, tive que pular a roleta, pois não tinha dinheiro nem pra passagem, por isso, só mais uma audácia, caro leitor: salário mínimo, no Brasil, é um pleonasmo.

“Quando morava em Iconha
Fumava muita maconha
Mas hoje é outra história
Pois vivo na grande Vitória.”

— Permita-me também falar um pouco sobre o medo, a fim de que não entenda minha companhia apenas por causa de sua vodka — disse-lhe sorrindo e com uma ideia que me possuía já há algum tempo. — É evidente que o medo surge quando percebemos nossa finitude inexorável e insignificância diante da existência e desse imenso universo. A morte como algo inevitável, tendo o tempo como nosso algoz mais feroz. A dor e o sofrimento como receitas indissociáveis à condição humana. No entanto, o que torna minha geração, produto de pais divorciados, pós-ditadura, tão apática e irresponsável, quando se trata de questões políticas? Nossos pais saíram cedo de casa, em busca de seus sonhos, lutaram e conquistaram uma “liberdade” que parecia impossível, num momento totalmente contraditório. Tudo bem, hoje, recebemos, graças a eles, algumas promessas até então impensáveis. Mas eles não imaginavam que suas conquistas representariam, de todo modo, para seus filhos, um presente de grego. Chamaram a revolução e fizeram a abertura política, entretanto, deixaram-nos um caminho incerto e sem horizontes. Em outras palavras, como disse Sartre, o homem livre é um homem angustiado, porque não possui em suas mãos um mapa que diz como viver a vida. Não quero absolutamente outra ditadura, entenda, mas nos restou, parece-me, apenas essa falta de sentido tremenda em relação ao futuro. Quanto ao medo, não sei dizer, mas, diante de tanto terror, de um inimigo concreto, o governo militar, nossos pais não acabaram projetando seus temores em cima da gente, tornando-nos essa maravilha insossa que somos, e, por tabela, uma geração frágil, medrosa e indecisa? — Não tinha entendido nada de seus versos, mas, talvez, aquela estrofe pudesse ser um convite, imaginei.


— Essa náusea que acabas de me contar é, na verdade, não só um mal-estar posterior à ditadura, mas sintoma de todo um século. No Brasil, o governo militar, como disseste, e, na Alemanha, com a queda do muro, por exemplo, contribuíram em muito para produzir uma geração de jovens desacreditados e sem rumo. Até a família dita nuclear, com o fim, fez desaparecer algumas referências. Isso, ao menos, aparentemente. No entanto, as referências existem, sim, e não são metafísicas. Se ficarmos conscientes até o fim dessa noite, você vai compreender que ainda há muito por lutar. Pois bem, essa falta de perspectiva produzida em sua geração, além do medo e apatia desmedidos, é uma forte característica do século XX, que gerou, com efeito, essa enorme falta de posição política na juventude, no final desse século. Veja os jovens de hoje, não sabem mais de que lado estão. Todos parecem flutuar à deriva, como se suas vidas não tivessem motivo. E o pior: desconhecem até mesmo quais são os lados. Quando sabemos os lados, quer dizer que há escolhas e tentativas de superação humana e, assim, um melhoramento social. Quando não enxergamos mais os lados, caímos num relativismo vazio, onde nada tem sentido e tudo se torna permitido. Se tudo pode, a recíproca também é válida, ou seja, também nada é possivel. O que é isso? Niilismo. Se você não se posiciona, não toma um lado, algo por lutar, que envolva um destino humano, e não meramente uma satisfação pessoal, você se torna um niilista passivo. E na falta de um sentido imanente, buscamos um sentido metafísico, ou seja, Deus. Percebes como igrejas e botecos estão se proliferando na mesma velocidade? — disse, com um riso no canto da boca. — Mas Deus está morto há um século pelo menos, embora ainda seja muito procurado em Sua cova. Rogério Skylab diz que a sepultura é a vontade do morto de não ser esquecido... Enfim, e há um século vivenciamos esse Nada, por isso, a barbárie em que nos encontramos atualmente, em todos os campos da sociedade, seja no plano ético, político ou estético. O que o pensamento humano e a obra de arte representam, hoje, senão, uma pobreza geral de espírito? E mais, a maioria diz, descaradamente, “não tenho um lado porque estou do meu próprio lado”, numa atitude extremamente narcisista e co(nfo)rtante. Que pilhéria! Pois não existe “eu estou do meu lado” quando você está irremediavelmente jogado no mundo, ou, imitando Heidegger, quando “o homem é um ser no mundo”. Antes do Ser, está a política, Guattari dizia. Então, por mais que eu diga, “Ah, estou do meu lado”, na verdade, nos colocamos dentro da linguagem da Situação ou da Oposição, dependendo da perspectiva dominante. Sempre estamos posicionados, vinculados a uma ideologia. Mesmo quando optamos pela resignação acerca da realidade. E esse conformismo talvez seja sinal de que precisemos, urgentemente, inventar outras formas de resistência, que respondam com mais precisão aos problemas do nosso tempo.


— De fato, Cazuza foi brilhante quando disse, ao fim da ditadura, “meu partido é um coração partido... E aquele garoto que ia mudar o mundo agora assiste a tudo em cima do muro..." — cantei com entusiasmo. Naquela época, durante a ditadura, tínhamos um inimigo concreto, um alvo certo, os militares, mas e agora? Hoje, parece que os inimigos se multiplicaram e tornaram-se invisíveis. Hoje, eles são muitos e estão escondidos por toda parte. O homem não é mais senhor nem mesmo dentro de sua própria casa. Até nosso inconsciente, às vezes me pergunto, não poderia também ser um inimigo em potencial? Nesse instante começou a chover. Os estudantes, deslumbrados com o jogo, pegaram as mesas junto com as cadeiras e colocaram-nas debaixo de uma marquise, onde não molhava. Como já estávamos embriagados, não arredamos o pé dali. Se quiséssemos nos proteger da chuva, teríamos que nos juntar aos estudantes. Sendo assim, tomamos, num só tempo, as duas águas. Carlos e eu, como Raul Seixas, já tínhamos perdido o medo. Dias depois, é claro, peguei um forte resfriado e quase morri. Não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos.


— Quando um alcoólatra bebe, sua intenção é sempre o penúltimo copo — disse a ele. — Pois, o último copo jamais seria de sua consciência, posto que estaria morto. Seguindo esse raciocínio, como pode o homem perder seu tempo pensando na morte e temê-la se jamais irá conhecê-la? Todo dia morremos um pouco, é verdade, entretanto, a minha própria morte, nunca terei ciência. Ela será sempre indiferente à minha pessoa e eu, da mesma forma, deveria também ser indiferente a ela. — Carlos acendeu outro charuto com ímpar ciência. — Por outro lado, repare, qual seria nossa única certeza, senão, a ideia da morte? Ora, se isso procede, se temos certeza de que vamos morrer, então, vamos encarar a existência com vigor e regozijo, sem medo, já que a noção exata da morte nos dá segurança. Portanto, se já temos essa primeira garantia, “vamos morrer um dia”, isso deveria nos trazer conforto por se tratar de uma certeza absoluta.


Carlos limpou os óculos e bebeu mais e mais. E mais e mais eu bebia. Carlos perguntou-me se gostaria de tomar uma "cervejinha", disse que não, só vodka, nada de misturas, pois tinha que trabalhar cedo no dia seguinte — esse disparate foi minha melhor piada, em anos. Depois desse episódio, fiz como Zeca Baleiro, na música, “Eu despedi meu patrão”. Salário mínimo é um pleonasmo, pensava constantemente! Bebíamos somente daquela aguinha oriental, por uma questão de honra e postura. Ele disse assim, olhando precipitadamente para o nada, quando pude, então, perceber a insânia nos seus olhos.


— Quase tudo é uma questão de linguagem... e, esta, é quem verdadeiramente constrói realidades. — voltando à conversa, disse — Desculpe-me, jovem, como estavas dizendo...


— Antes, quando ouvia muito Punk-rock, tinha imensa ojeriza aos metaleiros. Para que você entenda aonde quero chegar, Carlos, vou me utilizar do mesmo argumento que outrora usava. Um metaleiro, todo de preto, que simbolicamente representa uma contravenção, diz-se anticristo. Usa até um crucifixo de ponta cabeça e louva ao Diabo. E, assim, acredita estar sendo subversivo e crítico da cultura cristã. Quando Nietzsche diz que “jamais nos livraremos de Deus, posto que cremos ainda na gramática”, logo, tudo se esclarece. Os adoradores do Cão, do Cramunhão, do Beiçudo, do Coisa-Ruim, do Rabudo, do Tinhoso, do Capeta, do Demônio, do bom e velho pai do rock, enfim, do Diabo, não sacam que isso é tão-somente uma questão de linguagem. Eles ainda pensam em termos binários. Como? Aquele que adora o “anjo caído” é um cristão dissimulado que só afirma mais ainda o cristianismo, visto que a figura do diabo só existe na mitologia cristã. Sair de um extremo e caminhar para outro, nesse caso, em si, não muda nada, visto que ambos, o deus e o diabo, estão inseridos numa mesma linha de pensamento. Da mesma forma, essas cotas para Negros, em universidades... Uma palhaçada de extremo mau gosto, não acha?!


— Pois é, um argumento que só afirma mais ainda a soberania do homem branco — disse, Carlos, doutoralmente. — “Tudo bem”, diz o discurso dominante, “nós, os Brancos, deixamos os negros entrarem nas universidades sob a condição de cotas”, que, na verdade é apenas um paliativo, uma esmola, um engodo, que mascaram o verdadeiro problema. O verdadeiro problema é: ao invés de brigarmos por igualdades, tínhamos de lutar por diferenças. Nietzsche dizia que a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos. A diferença é a verdadeira linguagem da esquerda como resistência.


Ele ficou emocionado nesse instante, pois viera à memória a imagem de Jeanne Marie, uma antiga parceira de militância e seu grande amor. Marie nascera do outro lado do equador, em Caiena, mas Carlos a conhecera durante os protestos de 68, na França. Sua tese de doutorado, na Sorbonne, havia sido sobre um “Feminismo da Diferença”, com base nos estudos de esquizo-análise e nos escritos de Esther Vilar, Carol Gilligan e Camile Paglia. Agora, morava em sua cidade natal, cuidando da jovem Gabrielle, que sonha um dia em ser baixista de uma banda feminina de punk-rock, porém, underground. "Umas bochechas lindas... uma cútiz tão clara, que parece desbotada... sua palidez contrasta formidavelmente com seus belos olhos e cabelos negros... é bastante esperta, parecida com a mãe... e bastante atrevida como eu quando era jovem", ele dizia, pegando a outra garrafa de vodka, no embornal. "Mas, no fundo, apesar dessas semelhanças, que, na verdade, são apenas um anseio de identidade, Gabi tem suas singularidades... ela é muito debochada, com bastante humor, por exemplo, e, isso, não sei a quem puxou!", exclamou, pensativo. Quando Carlos visitava Marie, uma vez por ano, e via a menina crescendo, o amor entre eles logo renascia. Iriam se amar pelo resto da vida, sem dúvida, embora, optassem por viver suas vidas, separados.


— Jeanne odeia esse feminismo de araque, esse feminismo patriarcal, que, segundo ela, trata-se de um machismo às avessas, afirmando ainda mais a linguagem dominante, onde subordina-se aos interesses e imperativos da dominação para se eternizar no poder como a vontade do mesmo – à semelhança de um escravo que se torna poderoso mas que não se inventa como senhor. Como sinto saudades do seu raciocínio osmótico. Somos tão parecidos que discordamos em quase de tudo... brigamos quase sempre... mas ela sempre me perdoa. — riu-se, com uma piscadela. —  Sua pele é como uma fruta exótica, da Amazônia, entre o branco e o negro, os lábios são carnudos, de um vermelho acinzentado... as mãos macias... e os dedos compridos, como se fosse pianista. Possui um longo cabelo bem liso e olhos castanhos. Adoro olhá-la de óculos enquanto lê — disse, agora, com lágrimas nos olhos. — Nunca casamos por uma questão de temperamento. “As mulheres, assim como toda minoria, os negros, os índios, enfim... ao invés de buscarem igualdades, quaisquer que sejam elas, sociais, econômicas, ou políticas, deveriam expor e buscar as diferenças, que são claras. Não que biologia seja destino, mas, a interação, biologia e cultura, produz destino... como uma natureza social que produz diferenças", ela me diz, entende?!


— Sim. Mas essa própria noção de diferença, eu a percebo muito arriscada, pois, no fundo, quase todo mundo confunde. Hoje, quando vejo a mídia dizer “vamos respeitar as diferenças”, aquilo me soa como um profundo engodo. Na verdade, está sendo dito isto, “respeitem também as diferenças do opressor e da dominância”, porque nos encontramos no momento onde tudo pode, até mesmo a diferença daquele que oprime. "É isso aí, Coca-Cola e viva as diferenças", lembrei-me desse comercial contemporâneo. A Diferença, grosso modo, é dizer que não devemos aceitar qualquer forma de opressão e manutenção da ordem vigente, a fim de criarmos outras maneiras de viver a vida. A diferença verdadeira é um sinal de beatitude e graça, que quer trazer à vida uma novidade e uma suavidade, e não, um congelamento da realidade, como querem os poderes estabelecidos.


Mais uma vez, havia entre nós dois um bom diálogo, porque ali não discutíamos um gosto particular. Odeio opinião, cada um tem a sua. Uma boa conversa, como aquela, não era uma discussão pessoal, um assunto envolvendo o pronome "eu" e seus derivados, mas dois pensamentos que olhavam um destino e uma coletividade. Quando as pessoas começam a proferir suas opiniões perto de mim, "eu acho isso, eu acho aquilo", fico logo enjoado e impaciente. Saio de perto dizendo cinicamente, “você está certo, fui!”. As pessoas têm uma necessidade enorme de dizer o que pensam, como se seus pensamentos íntimos fossem necessários ao mundo, por vaidade ou hábito, sei lá! No filme “Clube da Luta”, Tyler Durden diz mais ou menos isto, “esqueça que você é especial, você é a mesma matéria orgânica podre como todo mundo”. Ou seja, uma luta verdadeira é sempre cósmica e universal, sem pronomes na primeira pessoa. Hoje, cada um só pensa no seu. Perdemos, no mundo moderno, a fé que os povos antigos possuíam, quando lutavam em nome de uma raça. Repare, por exemplo, os artistas de hoje. Eles não se preocupam mais com a função primeira da arte, que é criar outras percepções da realidade e, assim, novos modos de vida; querem somente o sucesso fácil, o glamour e o reconhecimento rápido e seguro do olhar alheio. Zé Geraldo, na música “Tô Zerado”, canta que “é feliz por não ter mais a ilusão de aparecer nos programas do Gugu e do Faustão”, que foda! Quem conhece o mínimo de arte sabe que os grandes gênios passaram longe disso. A Plebe Rude, de maneira irreverente, canta sobre essa ambição na música “Minha Renda”. Fazer da arte um motivo para se ter fama me parece um profundo desrespeito, já que, como artista, a ideia é tão-somente criar. A arte não nos pertence, não somos especiais. A arte é um meio para a revolução e melhoramento do pensamento humano. Se você quer ganhar dinheiro, faça outra coisa, seja funcionário público, jogue na mega-sena, ou roube um Banco. Por isso, talvez, a maioria dos grandes gênios tenha vivido uma vida de abnegações. O próprio Sartre recusou o prêmio Nobel de literatura pois dizia que se assim o fizesse estaria cedendo sua liberdade a outros; além do mais, nenhuma instituição pode julgar a obra de um verdadeiro pensador... Mais uma vez, quem seria Kafka se sua obra não fosse salva pelo seu amigo Max Brod, da fogueira? Quer dizer, nenhuma pessoa é essencial ao mundo. O mundo vai sobreviver com ou sem a gente. O que cada existência pessoal significa diante da imensidão misteriosa do universo? O problema, hoje, é que não fazemos mais sacrifícios em nome de algo maior, como fizeram nossos antecessores. Sem dor e sacrifício coletivos a humanidade jamais teria chegado até aqui. Carlos bebeu mais um bocado e disse:


— A questão é saber quais os lados e de que lado nós estamos? E os lados são estes: Dominância ou Resistência. A maioria prefere a dominância porque passa uma ilusão de poder, e, com isso, uma fantasia maior de segurança. Mas é um poder vazio, uma falso domínio, porque não visa à diferença, tornando a vida pesadamente reduzida e triste. A resistência é uma minoria, claro, onde não há garantias, mas somente possibilidades. Por isso, é o lado que me dá mais prazer e sentido em relação ao futuro, visto que nos dá ânimo com o fim de que algo possa ser inventado. Se há angústias e incertezas, como disseste, veja isso como potência e riqueza, já que o futuro se põe em aberto para criarmos outras realidades. De fato, o preço da liberdade é o mistério. Outra pergunta: Qual posicionamento deixa a vida mais alegre? Qual lado permite à vida seguir seu verdadeiro curso de mudança e beatitude? Será a Direita-dominante, que quer sempre fixar uma realidade para todos nós, um padrão, fomentando o próprio poder, ou, o outro lado, a verdadeira esquerda enquanto resistência, que procura novas formas de vida, improvisações? Só a resistência nos permite quebrar essa dicotomia do pensamento e da linguagem, que tanto empobrece a vida.


Um daqueles estudantes fascinados, que assistia ao jogo, foi me cumprimentar, no final da partida. Trajava uma daquelas camisas com estampa do Che Guevara. Tinha cabelos cuidadosamente desarrumados, uma barba por fazer, sandálias havaianas, corpo todo tatuado e piercings, eu acho, até no olho do... Cuidado, um típico estudante universitário! Queria trocar uma ideia comigo, a respeito de sei lá o quê, mas eu disse, sem pestanejar, que preferia continuar com minhas próprias ideias a trocar com ele, pois, com certeza, eu sairia perdendo: "— Eu queria propor-lhe uma troca de idéias... — Deus me livre!", essa frase de Mario Quintana é genial! “Quanto ficou o jogo?”, disse. Ele respondeu que a "pelada" tinha empatado. “E você, torceu pra quem?”, perguntei sem muito interesse na resposta. Ele disse que não gostava da seleção brasileira porque a maioria dos jogadores atuava fora do país - também concordei - e que odiava os Estados Unidos porque era comunista. Então, mandou um daqueles argumentos, de cima do muro, como qualquer outro atual, “torci pelo empate", e de fato, o jogo terminara 0 x 0. Eu perguntei, "pra quem?". Ele se retirou. O leitor pode perguntar, "torcer pelo empate não seria também tomar uma posição"? Pode ser, mas às vezes penso que, dependendo das circunstâncias, essa atitude seria mais um ato de ma-fé. Tipo: quando alguém vota Nulo, mesmo que essa opção vença as eleições, jamais poderá assumir a presidência e governar o país. Mas ainda não estou tão certo disso. Carlos arrematou:


— Veja, PT ou PSDB, ainda assim, pertencem a uma mesma linguagem, que, em si, não diferem nada um do outro. Dizer que PT é esquerda e PSDB, direita, é só uma maneira de dar nome aos bois. — disse Carlos, agora, pedindo uns torresmos. — Se quem está do lado do Poder apresenta-se como dominância, então, quem estiver lá, será da Direita, que, como linguagem, representa a maioria. A grande questão atual é: o que é a esquerda? Dito de outro modo, quem são, na verdade, os representantes da esquerda, no Brasil e no mundo? A esquerda, como linguagem, deveria ser uma resistência, antes de tudo, àquilo que verdadeiramente nos oprime.


— Se há poder tem de haver resistência, terceira lei de Newton. E ninguém exerce poder impunemente e nem é apenas passivo nas relações de poder. — disse, querendo mostrar perspicácia.


Carlos pediu um prato de feijoada. Eu aceitei sem culpa quando ele me ofereceu outro. A chuva havia terminado. Os estudantes pegaram suas coisas e foram em direção ao ponto. Mais uma vez, saíram de seus lugares e partiram de volta pra casa, onde suas camas macias os aguardavam. O trânsito estava bem mais calmo e trafegável. Carlos continuava:


— A esquerda nunca pode ser maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe a existência de um padrão, de um rebanho. Até quando se vota, não é apenas a maior quantidade que vota em favor de determinada coisa... não é só isso... há toda uma linguagem envolvida. Já a esquerda, pensa sempre a minoria, por exemplo, a mulher, o negro, o índio, o homossexual, a criança, o velho... É a instância desarticulada do poder. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem-branco-cidadão-adulto-civilizado-heterossexual-macho. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. E, repare, toda a cultura ocidental se baseia nessa imagem. A moral, as leis, a religião - o Cristo, de olhos azuis -, os costumes etc..


— Tô ligado! — exclamei, com entusiasmo.


— E ainda, os poderes estabelecidos não podem combater diretamente a verdadeira esquerda, que só pode ser um saber marginal, a princípio; em outras palavras, um novo saber ainda não nomeado e codificado pelo sistema. As ferramentas do poder, por isso, não conseguem delimitar as linhas de fuga dessa novidade. O que representam a pirataria no corpus social e o vírus no corpus biológico? Como o poder age, então? Trata de assimilar e apreender o mais rápido possível os desenhos da resistência, ao invés de lutar contra...

— Não se pode com eles, então junte-se a eles...

Como aconteceu com o punk, quando as lojas começaram a vender calças rasgadas e as gravadoras passaram a produzir bandas nesse estilo. Ou seja, essa imagem sensata da razão dominante, vinculada ao significante do homem, adulto, macho, cidadão europeu, age sugando esse novo saber e só assim consegue "vencê-lo". — O dono do bar, bastante estressado, queria fechar seu estabelecimento, dizendo-nos, "Bora, bora... vou dormir e deixar vocês dois aí". Mas, continuávamos no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, distantes dali, embriagados de vodka e pensamentos.


— Pode-se dizer, então, que a maioria nunca é ninguém, justamente, por querer sempre estar do lado da dominância, que é vazia... — eu disse, tragando mais um pouco do "mel do melhor".


— Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho etc.. As mulheres também vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Todos os processos revolucionários, saberes marginais e a verdadeira obra de arte são minorias. Todas as revoluções são minoritárias. A esquerda é o conjunto dos processos minoritários. A maioria é ninguém e a minoria é todo mundo, percebes?


— Isso! — gritei, enquanto enchia meu copo novamente. — Temos então que tomar o poder, fazer da esquerda a própria direita.


— Não, mil vezes, não! Assim, faríamos a mesma história, que disseste sobre os metaleiros... Estaríamos sendo face da mesma moeda. Como resistentes, temos que estar sempre à margem. Tomar o poder seria fazer parte e corroborar com toda essa sujeira da linguagem dominante. Ser de esquerda é isso: saber que na minoria é que acontece o fenômeno da criação. Criar outras percepções da realidade a fim de que sejam produzidos novos modos de vida. Essas novas formas, como ainda não foram assimiladas pelo poder estabelecido, só podem ser minorias. Além disso, a resistência serve, no mínimo, como compensação de forças. Ação e reação, lembra?


— Tudo bem, Carlos, mas, às vezes, penso se esse discurso que você se utiliza não seria moralista?


— Não. Ético, sim. A linguagem da moral, entenda, por estar dentro de um pensamento metafísico, é eterna. Basta olharmos os 10 mandamentos, que, para muitos, funcionam até hoje. Quando digo Dominância ou Resistência faço-o fora do plano metafísico e dentro de um pensamento imanente, que não se permite eterno. Ou seja, as dominâncias e as resistências não são absolutas. Que isso quer dizer? Quer dizer que cada momento histórico produz novas relações de poder. Outrora, o movimento punk era resistência. Hoje, não mais, embora, sirva de exemplo para criações de outras formas de resistências.


— Enteeeeeeendo — disse, já com sono — mas, sinceramente, você acredita numa revolução, hoje?


— Hoje, não vejo uma revolução que não seja micro-política. Ou seja, ao invés de tomarmos o poder, em Brasília, devemos começar com atitudes mínimas dentro de nossa própria casa, pois, isto irá servir de exemplo a outras relações. A máxima da vovó: costume de casa vai à praça. Por isso, é saudável estarmos sempre atentos às formas de dominância que são produzidas em cada contexto e, assim, criarmos novas formas de resistências. Penso também a arte como uma arma política. Entendo qualquer manifesto artístico como maneira de se fazer micro-política, agindo nos pequenos espaços. Em outras palavras, a questão já não é mais mudar o mundo por meio duma ação certeira, mirando um inimigo apenas, como quis a tradição. Dessa maneira, o poder se mantém como tal, só mudando seu detentor. No início da conversa, disseste que não tínhamos apenas um inimigo e que, este, parecia ter se multiplicado. Tudo bem. Hoje, a dominância apresenta poderes múltiplos, como também há várias maneiras de resistências, por isso, a ideia de agirmos na esfera local. Se o poder está em toda parte, a ação, então, torna-se plural, gratuita e imediata. O termo “revolução cotidiana” é bastante comum atualmente, pois significa dizer que a mudança é aqui e agora, nas práticas do dia a dia, ao contrário daqueles que enxergavam a revolução sempre adiante, como uma meta a ser alcançada; ela está, na verdade, em nossas próprias relações sociais, econômicas, políticas, familiares etc.. O poder não é algo que “uns possuem” e “outros não”. A esquerda como resistência também possui um certo tipo de poder, mas não um poder que quer reduzir a vida, por isso, chamamos potência. A potência quer sempre mais vida. Mas isso é só uma encheção de lingüística. O que importa é saber que essas forças são imanente às relações humanas, como algo que se pratica ou se sofre... Mas, essa resistência, essa revolução micro-política é dizer que devemos iniciar a mudança, sobretudo, pelo pensamento e, assim, como extensão, a linguagem...


Carlos bocejava compassadamente. Quando demos por si, o bar havia fechado. Fui mijar, então, na porta de uma igreja evangélica, que ficava às escuras, do outro lado da rua. Na volta, Carlos roncava como se estivesse no sofá de casa. Ir a um boteco, beber mais do que qualquer um, sem um tostão furado e sair girando mais do que todo o mundo, já estava me deixando um cabra nojento e mal acostumado. A madrugada ia alta, e como não havia mais ônibus nos terminais, aproveitei o embalo e deitei a cabeça sobre a mesa. Será que o dono do estabelecimento esquecera de nos cobrar os torresmos? E a feijoada? Não acredito no sobrenatural. De todo modo, ficamos ali sentados, do lado do bar, eu e Carlos, adormecidos e de prontidão, aguardando a manhã seguinte. Afinal, faltava-nos acertar umas contas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

1 3° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O ETERNO TRANSTORNO
(...) é como se o "A" se olhasse no espelho 'N' e se visse a si mesmo refletido do outro lado, a sua própria face "A".

Chovia bastante naqueles dias e como um raio Ana passou pela portaria sem sequer notar o que lhe dissera o porteiro, “Seu pai me pediu pra te avisar que...”. Eureca! Acabara de ter uma magnífica idéia sobre um projeto de pesquisa; uma luz animava sua imaginação como a chave que abre as misteriosas portas do conhecimento. É preciso cuidar bem dessas preciosas centelhas, “reter e rever para prever e reter”, dizia a si mesma, pois a inspiração soa como caos nos “becos escuros da memória, velha cidade de traições”. É possível, entretanto, recuperar, mesmo apesar dos contratempos, ao menos parcialmente, os lampejos perdidos, já que todo acontecimento, quando irrompe, recorre à memória de alguma forma. A nota é átona à sua pausa!


Com passos firmes e molhados, olhava sempre além daquele instante. Chamou o elevador. Sete, seis, cinco, quatro e nada. Sua raiva aumentava à medida que o elevador não se aproximava. (...) dois, um: “Faltou luz”, alguém disse. Subiu a escada feito um foguete, alguém a cumprimentou, ela apenas resmungou com o coração célere, terceiro andar, tocou a campainha uma, duas, três, quatro e nada. Respirou repetidas vezes. (...) cinco, seis, sete e ninguém atendia. Quanto mais insistia menos paciência tinha. “A droga da gorda já foi embora”, satirizou, referindo-se à empregada. “A chave?!”, pensou então. Não podia desperdiçar aquele momento único onde só os seres elevados, como os artistas, compreendem, quando no peito bate um pensamento verdadeiro: "ame o poema". Desceu tudo de novo, com mais pressa ainda e como uma arara perguntou ao porteiro “Acorde, Pedroca!, a chave de casa tá aí?”. E novamente fez o mesmo percurso até virar a chave e senti-la quebrar na própria mão. Erro comum ocorre.


Experimentava naquele dia o Eterno Transtorno. Voltou à portaria e falou com o porteiro que providenciou logo um chaveiro. Algum tempo depois, enfim, o retorno. Despiu-se, tênis de um lado, camisa do outro. Tomou um banho rápido, fritou um ovo e após a sopa, de repente, um barulho, “teve torcida gritando quando a luz voltou”. Ligou o computador e, enquanto olhava para o monitor, via seu rosto refletido na luz azul da tela, em perfeita simetria. Olhou a caixa de e-mails e viu a seguinte frase, que a deixou um pouco confusa:
          
Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos


Concentrada naquela misteriosa expressão, que parecia movimentar-se pra lá e pra cá, esqueceu-se da magnífica idéia sobre seu trabalho. “Ahhhhh!!!!!!”. Chorou de tanta raiva que socou as paredes num ato idiota. Sabia, assim mesmo, que até o poeta erra, e, de preferência, “duas três quatro cinco seis até esse erro aprender que só o erro tem vez”. Ah!, na manhã seguinte, talvez, voltasse a lembrar. Mas hoje, a noite estava fria, e sua cabeça quente.

10° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O VISCOSO

"Ele tenta se fortalecer demonstrando minha fraqueza."

“Cinco coisas ele nega assim como eu: 1, o Livre-arbítrio; 2, a Moral; 3, os fins; 4, o não-egoísmo; e 5, o mal.” Carta de Nietzsche, sobre Spinoza.


Durante toda a minha vida acadêmica tive o desprazer de conhecer uma espécie bastante triste e fraca. E aqui, no estado, dizem que essa raça se prolifera com mais facilidade. Por causa de sua localização geográfica e sua constituição histórica, o Espírito Santo deve ter ressentido uma atenção especial (sei lá, mas espremido pelo RJ, MG e SP, esse lugar acabou sendo esquecido, tornando-se, então, amargurado). Geralmente, a inveja acomete à pessoa muito mimada e vaidosa, carente de aplausos. Essa espécie, a quem chamamos de “viscoso”, está muito em moda nos dias de hoje, mas sempre se pôde ouvir falar a seu respeito. Um amigo de buteco, Gazu, certa vez me disse assim, “como nossa sociedade anda ressentida, as pessoas só abrem a boca pra falar mal umas das outras; parece que só aprenderam a criticar negativamente o próximo (em qualquer situação), mas não a olhar a si mesmos e seus graves defeitos, como a autocomiseração e o ressentimento”. Do Viscoso, só nos resta desviar o olhar e rir bastante, como fazia Mozart. O ressentido age pela paixão e não pela ação. Sua atitude não sendo ativa, torna-se re-ativa. Não me lembro qual filme, onde o personagem principal dizia que “o ressentimento é o veneno que você toma esperando que o outro morra.” Não há nada que deprima mais o ser humano (mais depressa) do que a paixão do ressentimento. Aí, pensei sobre o que dissera Gazu e percebi dias depois que ele tinha razão, e que esse sentimento ressentido não era apenas um mal atual, mas de longa data.


Se pegarmos a “Genealogia da Moral”, de Nietzsche, iremos entender como foi produzido o ressentimento em seus corações. Não somente a ideia de ressentimento é desconstruída, mas também a noção de culpa. O ressentido quer sempre atribuir culpa ao outro como se o outro fosse totalmente responsável por suas ações. Primeiramente, rechaçamos logo essa ideia de culpa porque pressupõe a noção de um “eu” com “livre-arbítrio”. Isso, como se sabe, são ficções lingüísticas forjadas pelo pensamento platônico e pela lógica aristotélica. Mas não quero me prender mais uma vez a isso. A conversa aqui diz respeito tão somente aos vampiros, que Sartre denominou “Viscoso”:


"O viscoso vence não porque é mais forte, mas justamente por sua fraqueza, ele acabacolando e sugandotoda a energiadoutro."


As pessoas que não conseguem dar sentido a suas vidas se tornam extremamente viscosas e, em consequencia, como descarregamento de seu peso, jogam todo o seu ressentimento em cima dos outros. Uma maneira de detectar um ressentido viscoso é ver que sua revolta é sempre pessoal, pois quer atingir imediatamente o outro, o próximo; ao contrário, pois, quando tomamos uma atitude de resistência em relação àquilo que realmente nos oprime, atacamos linhas de pensamentos, poderes estabelecidos, posturas dominantes, ou seja, o distante em uma coletividade.


O Viscoso (leia-se também “vingativo para com a vida” ) surge quando as fabulações de “bom” e “mau” são construídas, conceitos básicos da moralidade humana. Os nobres definem o que é “bom” por si mesmos – o que eu faço é bom! Uma moral verdadeiramente nobre é de auto-afirmação. Uma moral escrava (O Viscoso) não define o que é bom a partir de si mesmo, mas reativamente, por negação das qualidades do homem nobre, ou seja – o que ele faz é mau! O que o nobre enxerga como “bom”, felicidade, paixão pela vida, confiança em sua superioridade, afirmação de sua potência, orgulho, força, coragem etc., para o ressentido escravo são tidas como “más”. De modo que para o escravo, ao contrário da pessoa , o conceito moral chave é a noção negativa de “mau” e não a noção positiva de “bom”. O escravo pensa as categorias de moralidade a partir de sua própria fraqueza e impotência. Incapaz de aceitar sua condição real ou de lutar contra o que lhe incomoda, o ressentido reage desvalorizando as qualidades do homem nobre, tratando-as como moralmente negativas, em um movimento de projeção; ressente-se da força do tipo nobre, na qual vê espelhada sua impotência. O escravo ressente-se do que a vida lhe oferece e do que ele mesmo considera-se capaz de fazer com ela, e vinga-se simbolicamente, desqualificando moralmente os que são capazes de afirmar suas vontades. E graças ao cristianismo – o sacerdote –, segundo Nietzsche, esse modelo de moralidade, código moral do tipo humano servil, vinga até hoje. Em outras palavras, o nobre agora, passa a julgar-se pelos padrões do escravo, que o considera “mau”, passando a comportar-se tal como o escravo, isto é, contra seus impulsos, características e valores; volta suas forças contra si mesmo, tornando-se culpado, impotente e infeliz.


Em outras palavras, o ressentido para se afirmar precisa necessariamente negar o outro enquanto que o homem nobre, para se afirmar, nem sequer pensa no outro. Uma outra da forma de perceber um ressentido é através de sua ironia. A ironia é a tentativa viscosa de humor do ressentido. A ironia é marca do ressentido, basta lembrarmos de Sócrates, um grego em decadência. A diferença entre Ironia e Humor, entretanto, só nas próximas etapas de destilação. Desculpe-me, mas é impossível desagradar a todos sempre...rs.


Outra característica do viscoso, percebam, é sua espantosa insegurança. Reparem como ele tem imensa convicção em suas ideias. Nietzsche já dizia que o pior inimigo da verdade não é a mentira, mas a convicção. Quando o ressentido viscoso diz ter certeza sobre algo é apenas sinal de sua insegurança. Não existem certezas ou verdades absolutas. Toda certeza é tão-somente uma necessidade psicológica de duração da vontade humana diante da efemeridade terrena, ou seja, uma forma de adquirir, mesmo reduzindo a vida, uma falsa segurança:


“Não se encha de ar: senão basta uma alfinetada para estourá-lo." F. N.


E como desviar o olhar, dizer não aos vampiros-ressentidos-viscosos?

“Como faço pra subir aquele monte?  - Não pense, apenas suba!”  Nietzsche
O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo. Fernando Pessoa


Quem viu "Mente Brilhante", deve se recordar que John Nash, personagem protagonista, finalmente, depois de tanto sofrimento por causa de uma devastadora esquizofrenia, aprende a lidar com sua "doença". É importante dizer "lidar", e não se "curar", já que sua "doença" era algo parte de sua constituição mental. E o que foi descoberto no fim da historia? Sim, ele passou a “desviar” o olhar:


"Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar..."


Neste trecho de “O Guardador de Rebanhos, poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o que parece ser mais evidente é uma vontade de desrazão, ou seja, o poeta reitera a vontade de “não-pensar” como estribilho dessa estrofe. Por quê? É metáfora que representa as forças criadoras da vida, a força dionisíaca, em oposição à razão, ao pensamento, à força apolínea. Ele questiona o modo pela qual se estabeleceu a razão como superior à emoção. Em suma, uma crítica à racionalidade e à vontade de pensar, sobretudo, depois que Descartes disse que só o Ser com a faculdade do pensamento pode existir. Como disse Edgar Morin:


(...) uma percepção visual é o fruto da transformação de fótons, de estímulos luminosos sobre miríades de células que se encontram em nossa retina. Esses estímulos são codificados de modo binário e atravessam o nervo óptico, sofrem diferentes transformações em nosso cérebro para nos fornecer uma representação, uma percepção.


O modo de pensarmos desde Parmênides/Platão, como foi dito na etapa “O Fantasma” é dicotômico: estímulo-resposta, verdade-exclusão etc.. Até mesmo quando se supõe sair dessa binaridade, por exemplo, o travesti, ainda se faz preso a dualidade homem-mulher. A própria lingüística funciona de maneira binária, veja Saussure. Assim, pensar é uma forma reduzida de olhar a vida. O próprio Pessoa faz distinção entre “olhar” e “ver” no poema já aludido. Ou seja, assim como nossa Moral, pensar como se pensa ainda hoje pode vir a matar a vontade de viver, gerando as mais diversas neuroses. Deleuze ao interpretar Spinoza, coloca: 

Geralmente as pessoas fazem o somatório de suas infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando alguém se mete a contabilizar: "Ah, merda, há isso, e aquilo..." Spinoza propõe o inverso: ao invés de fazer o somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria como um ponto de partida local, à condição que sintamos que ela nos concerne verdadeiramente. Em cima disso forma-se a noção comum, em cima disso tenta-se ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para toda a vida. (...) a única coisa que conta são as maneiras de viver. A única coisa que conta é a meditação da vida, e a filosofia só pode ser uma meditação da vida; longe de ser uma meditação da morte, é a operação que consiste em fazer com que a morte só afete enfim a proporção relativamente menor de mim, a saber: vivê-la como um mau encontro. Simplesmente sabe-se muito bem que, à medida que um corpo se fatiga, as probabilidades de maus encontros aumentam.


De fato, o problema todo está no olhar ressentido do outro. E esse olhar ressentido pode acabar produzindo culpa em quem o recebe, gerando imensas neuroses. Aí, compadre, é um passo para se desenvolver uma esquizofrenia. “O inferno são os outros” disse Sartre.


Podemos então dizer que para obtermos sempre bons encontros seria desnecessário “pensar” quando nosso corpo vai mal, pois o risco de termos pensamentos ruins aumentam. Segundo Deleuze, só nos tornamos inteligentes quando fazemos um bom encontro com nosso corpo, e que nada em sua decomposição pode nos tornar sagazes, ou seja, afetados por um afeto triste (aqui, entendido como aquilo que descaracteriza as funções de nosso corpo e nos faz sucumbir), não teríamos sequer possibilidades de bons pensamentos. Nesse sentido, aprender a desviar o olhar se tornaria a maneira pela qual poderíamos lidar com o ressentido e nossa própria loucura já que ainda somos escravos do pensamento e da linguagem. Como diz Barthes, a linha de fuga da pensamento não está fora da linguagem, mas ela é o seu fora. No aforismo 276 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche diz:


Amor Fati: seja esse de agora em diante o meu amor. Não quero fazer guerra ao feio. Não quero acusar nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de ora em diante, a minha única negação. De resto, quero a partir de hoje ser alguém que apenas diz sim.


Como diz Deleuze, alguém que diz “sim” aos bons encontros, aos bons afetos, aos bons pensamentos; e quem diz “não” aos maus encontros e pensamentos, consegue enfim desviar o olhar. Desviar o olhar como quem busca um novo horizonte. Esse é o “fora” do pensamento. É uma pena que John Nash tenha descoberto isso só no fim da vida. É uma pena que a maioria queira fugir dos vampiros e se “curar” da loucura por meio da razão. Não! Assim, como só aprendemos a ler Nietzsche por meio do seu não-estilo, de sua desrazão, de sua loucura, de sua não-filosofia. Uma das resistências de hoje é traçar uma linha de fuga em relação ao viscoso ressentido a fim de que não sejamos infectados pela sua fraqueza e contagiados pela sua tristeza.

8° ETAPA DE DESTILAÇÃO

LÉO E BIA

A anima (termo em latim para alma) constitui o lado feminino no homem; o animus (termo em latim para mente ou espírito) constitui o lado masculino na psique da mulher. Ambos os sexos possuem aspectos do sexo oposto, não só biologicamente, através dos hormônios e genes, como também, psicologicamente através de sentimentos e atitudes. O homem, quando se afeiçoa por uma mulher, está projetando a imagem da mulher que ele tem internalizado.        C. Jung



Abriu o chuveiro, passou xampu e condicionador nos cabelos, massageando-os suavemente. Enxaguou e repetiu a operação. Afinal, uma cabeleira sedosa e cheia de brilho é outra coisa. Meia hora depois, “Anda loooogo”, ecoou uma voz de fora do banheiro, como um bumerangue. Enxugou-se, então, passou hidratante na pele e aparou as unhas. Colocou seu roupão, pegou o creme dental e, minuciosamente, pôs na escova. Limpou as laterais, na parte superior e inferior; a parte frontal foi com extremo cuidado, pois sabia do sorriso bonito que seus dentes lhe proporcionavam e não podia decepcionar àqueles a quem gostaria de mostrá-los. Em seguida, olho no olho, diante do espelho, passou, dente por dente, o fio entre eles. Quando saiu, ouviu de sua mãe, “Filho, assim vou me atrasar!”. Leonardo abriu a porta e saiu sorrindo, timidamente, beijando a mãe, no rosto.


Enquanto isso na cidade grande virou num só gole um uísque duplo apagou o cigarro ligou a guitarra no volume máximo e cantou “... eu fico sonhando em ser astronauta, eu olho pra lua, eu sinto sua falta”. Apesar da festa, o público parecia um tanto indiferente. Quando saiu beijou um carinha com quem ficava de quando em vez, pegou sua moto - sequer havia colocado o capacete - e vazou. Na rua só o berro hostil do silêncio acompanhou Bianca.


Léo fechou a porta do quarto e colocou o pijama. Era bastante lúcido e lúdico. Do lado da cama, uma agenda onde anotava alguns versos:

Dizem: Lua e Flor simbolizam o amor
Mas, Lua e Estrela como dizê-las,
Se O Sol e A Lua iluminam a rua,
Como, A Lua e Eu, uma criação de Deus?

Olhou pela janela e viu a lua majestosa e indecifravelmente calada, reservada e afastada nos seus pensamentos. Encantou-se mais uma vez, respirando o ar bucólico das cidadezinhas do interior. Notou a igreja e um casal de velhinhos que passeava de mãos dadas. Na praça, uma pequena festa da vizinhança tomava conta daquelas pessoas, que trocavam bastante afeto entre si. Antes de dormir, pegou seus óculos, limpou as lentes levemente, e leu mais um pouco das páginas sagradas da Bíblia. A mãe bateu na porta, dizendo que só iria voltar mais tarde, “boa noite, filho”, “Booa noooite, mãezinha!”. Horas depois, dormiu um sono perfeito. 


Bia entrou em casa passou pelo pai-bêbado no sofá “Boa noite, coroa!”. Comeu qualquer coisa e assistiu a um daqueles seriados de fim de noite. No seu quarto havia uma caixa preta onde guardava alguns objetos sem nenhum critério e, jogado num canto, um velho violão. Pegou um cd solo de um integrante dos Mutantes e pôs pra tocar “... não gosto do pessoal da NASA, cadê meu disco voador...”. Esqueceu-se de escovar os dentes e feito um míssil caiu na cama, de roupa e tudo. Tentou ler mas estava morta – sempre se culpava por não ter tempo para os livros. Enfim, já havia apagado.


Coincidência ou não, o fato é que sonharam o mesmo sonho naquela noite Léo e Bia sem nunca terem se encontrado. Nesse caso, Jung talvez dissesse ser coisa do “Inconsciente Coletivo”. Posso contar apenas o que está à superfície de minha memória, claro, pois é sempre difícil alcançar um sonho nas profundezas da consciência e abarcá-lo na sua totalidade, como sabemos. A Lua Curiosa, de longe, iluminava suas camas, parecendo observá-los:


Um lobo de pêlo vermelho vagava soturno pelo centro da cidade. Procurava alguma coisa. Uivava desesperadamente lua... lua... lua... lua... Virou-se pra si mesmo e perguntou:

— Qual lua procuro se ela se divide em outras mais? Costuma-se dizer que ela é de lua — disse, rindo-se de si próprio.

De imediato, soube que o que procurava não tinha um corpo fixo e um espírito imutável; mas que nosso satélite natural possuía momentos mediante seu relacionamento estabelecido com a Terra, o Sol e o observador. Alumiando as idéias, viu que não era noite de Lua cheia, nem minguante, nova ou crescente. Ele olhou para cima, pois gostaria dela como fosse, até mesmo se fosse a Lua de São Jorge ou uma Lua de Algodão. Percebeu, no entanto, que tinha algo esquisito naquela noite, pois não havia nada no céu. “Cadê a lua?”. O fato é que procurava algo, por assim dizer, bem longínquo. Respirou fundo e para disfarçar o que pensava diante de si, notou:

— Sim, só se ama alguém de verdade quando se ama, antes, a si mesmo. Mas, sobretudo, só se ama verdadeiramente o próximo quando aprendemos a amar o distante. Meu instinto lupino diz ainda que o que está próximo é fácil demais, não nos causa surpresa, visto que é uma tentativa, às vezes, desesperada, por identidade. Portanto, alguma coisa sem novidades, valerá à pena? No entanto, algo incomum e, ao mesmo tempo, raro, como um delicioso estranhamento, não seria um sacrifício maravilhoso? Penso que só dilatamos nossa percepção e inteligência quando almejamos o distante, abrindo-nos para o inusitado e permitindo-nos à fantástica aventura da experimentação. E somente nesse inesperado atravessamento é que compreendemos a nós mesmos e ao mesmo tempo nos reconhecemos no outro.

E como uma consciência que se debruça sobre si mesma, disse:

— Eis o princípio do amor-próprio. Claro! Quando olhamos nossos sentimentos, fazemos apenas com um dos olhos, e olhamos apenas a parte nobre. Mas, cabe ao outro olho enxergar nossas próprias fraquezas e estranhezas, ou seja, aquilo que moralmente representa o ridículo em cada um nós. Sejamos inteiros! Pois, assim, aceitamos também as diferenças mais pusilânimes no outro e chegamos completos ao exercício da alteridade. Sabe aqueles sentimentos e emoções que estão longe daquilo que temos como certo, bom e belo? Pensemos numa imagem humana que nos parece vergonhosa, que temos horror em admitir. As lágrimas, por exemplo. Se me permito chorar, se aceito com honestidade e, até mesmo, com certa altivez, sem fingimento, aprendo a entender as lágrimas no outro também.

De fato, não iria encontrar nenhuma lua onde pensava, já que apenas seu coração poderia mostrar-lhe o caminho. O jovem lobo sentiu-se velho e acabado. Foi até um chafariz tentar saciar sua sede. Nesse instante, enquanto bebia, irrompeu diante de seus olhos, naquele espelho fluido, uma imagem luminosa mais ou menos como a lua. Era um daqueles lustres enormes refletidos na água. O lobo, então, viu, num amálgama jubiloso, a si mesmo e a face pálida da luz. Não era fácil distingui-los, o clarão e o lobo, naquela superfície líquida. No fim, a luz foi tão intensa que se misturou à imagem dele como num Banho de Lua.

Pobre lobo! Jamais poderia encontrar fora o que já estava dentro de si. Ele se esquecera da quinta fase da lua, a Lua Negra. Nesse período, de 3 a 4 noites, a lua fica invisível no céu, habitando o coração de cada um de nós, enchendo-nos de fé. Aquele que não acredita em si próprio não pode enxergá-la, porque está habituado a buscar a felicidade além de seu próprio corpo, esquecendo-se de si, onde se encontra a verdadeira luz. “Foi quando eu vi aquela lua passar”, disse a si mesmo, durante um terço da madrugada.

Como são iguais nas suas diferenças! Adorado como Febo, distribuidor da luz, o lobo representa o aspecto maternal associado à idéia da fecundidade; uma loba nutriu Rômulo e Remo, reza a lenda. A lua, em razão de seu crescimento e de seu curso rápido, também simboliza a fertilidade. O lobo ainda traz a idéia do inconsciente da personalidade; e a lua, neste sentido, está relacionada às profundezas do inconsciente, simbolizando as forças psíquicas poderosas que escapam ao controle consciente.

— Lua, Lua, Lua, Lua...



Entre a noite e o dia há o infinito. O sonho nasceu da vida e a vida nasceu de um sonho. O galo cantou as 4 e 30, e Bianca acordou pontualmente às seis. Não podia se atrasar pois o ônibus para capital só passava de hora em hora. Pegou as lentes de contato na ponta do dedo indicador da mão direita. Verificou se a lente estava do lado correto. Olhou fixamente para frente e abaixou a pálpebra inferior com o dedo médio da mão direita. Olhou para cima e colocou a lente cuidadosamente na parte inferior do olho. Olhou para baixo, piscou os olhos e soltou a pálpebra imediatamente. Fez movimentos circulares com o dedo indicador na pálpebra inferior posicionando a lente no centro do olho. Brincou um pouco, no vasto quintal de casa, atirando um bumerangue, com seu cachorro, que ficava perdidinho, girando, girando, girando... Havia pães, queijo, presunto, leite e chocolate em pó. Como não podia com açúcar nem gordura, preferiu comer apenas frutas. Adorava conversar sozinha, porque toda vez que tinha alguém por perto, ficava com vergonha de falar. Fazia questão de deixar as coisas sempre claras, era perfeccionista e adorava receber atenção. Despediu-se da mãe, que acabara de acordar, e foi para o ponto. No colégio, durante a aula de espanhol, enquanto relia as insólitas páginas do Quixote, de Cervantes, sentiu alguma coisa martelando sua cabeça, do tipo "La Bela Luna", sabia lá, não lembrava.


Leonardo acordou preguiçosamente atrasado com seu pai dando-lhe “Bom dia, filho, nem vi você chegar”. Seu rosto parecia uma "Lua Branca", de tão inchado. Colocou a primeira calça que viu pela frente e uma camisa toda amarrotada. Foi de sapatos trocados um preto e o outro marrom. Acendeu um cigarrinho e foi caminhando um pouco confuso - eu quero ser um Astronauta de Mármore quando crescer, pensou. Pegou sua moto e sumiu no horizonte. Durante o tráfego intenso daquela manhã, lembrara-se de ter esquecidos os óculos. Já no colégio, mexia com os colegas e cantarolava pelos corredores, “E dizem que bem me quer/ E eu triste boemio da rua/ Casei-me também com a lua/ Que ainda é a minha mulher... E a noite de luar já não tem luz/ Quem me abraça é a negra solidão”. Queria nem saber das aulas de literatura, dizia, "cansei de mentira... é tudo ficção mesmo!", e gargalhava. Sabia que sonhara algo estranho mas nada lhe vinha à memória, "Dai-me um Luar", disse, tentando se lembrar.


No centro da cidade, após as aulas, quando voltava pra casa, à noite, Bia pegou um táxi, que parou na faixa, esperando pela travessia dos pedestres. Na rádio tocavam variações sobre um mesmo tema. O taxista, lunático, já mudava de marcha quando o sinal abriu, e Léo, distraído, no mundo da lua, surgiu do nada na frente do carro, que freou bruscamente parando em cima dele. Ela olhou assustada através do vidro do carro e pode notar o rosto de Léo concomitantemente ao seu próprio reflexo. Era difícil distinguir quem realmente estava sendo refletido naquele momento. Ele levantou a viseira do capacete pra verificar se havia atropelado alguém, olhando nos olhos dela. Leonardo, então, viu novamente sua imagem refletida nos olhos de Bianca, como Raios de Lua. “Sim, agora me lembro!”, disseram pra si mesmos, os dois. Pareciam estar em Em Plena Lua de Mel naquele acontecimento simbiótico. Nessa troca de olhares, ela sentiu que já se conheciam. Ele sentiu o mesmo, mas pensou, pensou, pensou e ficou na dúvida. Começava a tocar uma outra canção na rádio, dessa vez, do Oswaldo Montenegro, "... Qualquer maneira de amar varia ... Cuidar de amor exige mestria", quando o veículo e a moto partiram. Naquela noite, haveria Festa na Lua.

5° ETAPA DE DESTILAÇÃO

A FÓRMULA DO AMOR

"Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal "

F. N.
Do Simulacro:


Noite passada, ele sonhara com ela um sonho sem começo, ou antes, um sonho cujo começo era o começo do começo: um re-começo. Uma origem na qual nada poderia se originar. Pela primeira e última vez, o sol tinha sonhado com a lua. Essa origem era uma repetição anterior à própria repetição, um recomeço que antecede o começo, uma duplicação que se antecipa ao duplicado. Pois, o recomeço antes do começo não é, senão, a própria imagem em branco, o nada, o vazio absoluto; a ausência de sentido que, em virtude do “movimento” de repetição, é alçada à condição de presença: Amnésia. Noite passada, essa presença era ausência. Havia, também, bastante erotismo no sonho, funcionando como linguagem transgressiva e a-moral. Disse a poeta Clara Góes, num poema breve, "Quero você língua com língua sem linguagem". Sem linguagem? Que AMORalidade! Nesse sonho, as imagens a-fundavam tudo aquilo que a linguagem inventara: Deus, verdade, natureza, subjetividade, certo ou errado, bem ou mal etc.. Foi o primeiro e o último sonho do sol com a lua, um sonho, um esquecimento, uma criação, onde eles repetiam o vazio e alcançavam a plenitude...



A Fórmula do Amor
s = x + y(n – 1)



•    S = o simulacro.

•    X = o desconhecido, porque está sempre em construção (devir).

•    Y = o indizível (o que transborda a linguagem, uma não-linguagem).

•    [n – 1] = o termo da multiplicidade (a relação).




Em outras palavras, o simulacro é igual a soma do desconhecido (alteridade) com o indizível - ou affectus - (sentimento que não é representativo), vezes o termo da multiplicidade (que é o conjunto de individuações sem sujeito, uma postura que sempre subtrai a unidade, o universal, o verbo Ser, o significante etc..). Quem resolver essa equação, vai obter um bom encontro. Se, por um acaso, minha fómula não der certo, já que nem eu mesmo entendo, quem sabe, a de Cairo Trindade, "Terpar pra trepar", ou a de Eduardo Kac, "para curar um amor platônico só uma trepada homérica", funcionem melhor. Sinceramente, talvez, prefira as fórmulas Leminskianas:


"O amor, esse sufoco
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
Ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos."


e


"Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima."

2° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O FANTASMA
O objetivo da divisão não é, pois, em absoluto, dividir um genero em espécies, mas, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autêntico do inautentico (LS, 1974, p. 260)


Embora, a tarefa principal da filosofia do futuro seja reverter, como disse Nietzsche, o platonismo e seu legado (a lógica aristotélica, o cristianismo e quase toda a cultura ocidental), devemos pensar um pouco melhor o próprio Platão, alvo específico do autor de Zarathustra. Antes de pensarmos uma verdadeira resistência do pensamento e da linguagem, precisamos conhecer mais intimamente as ideias platônicas.


Já conhecemos sua divisão em essência e aparência, em inteligível e sensível, em original e cópia, e como sua simples dualidade, sua máquina binária, iria moldar para sempre nossa forma de ver o mundo. Se no Fédon e no Político, ele define bem essa hierarquia, no Sofista, ele vai deixar pistas sobre uma outra espécie de imagem, assim como a cópia, mas rechaçada pela tradicional história da filosofia: o simulacro, ou o próprio fantasma. Pois, o fantasma é aquele que torna impossível a fixidez de valores, inviabilizando qualquer tipo de determinação. Longe disso, oé colocado em jogo "pensamentos nômades e anarquias coroadas".

Se Ideia é essência de tudo e Copia, o fiel espelho dessa Ideia, o simulacro seria, como se diz, uma Cópia mal feita, ou quase cópia da Cópia, porque não refletiria, como a própria cópia, a semelhança, mas ao contrário, mostraria a dessemelhança. Isto é, não representaria um ícone justaposto à ideia. Apareceria, ao contrário, como desavença, assombração e incerteza; em outras palavras, como diferença. Haveria, então, entre Ideia-Cópia e simulacro uma alteração de natureza, ainda mais gritante do que Ideia e Cópia, visto que estas estariam, por assim dizer, num mesmo plano. A cópia é uma imagem dotada de semelhança e interior à Ideia, enquanto, o simulacro, uma imagem sem semelhança e exterior à Ideia. A Cópia é a semelhança exata da própria Ideia. Já o simulacro, um mais ou menos, como possibilidade, apenas simula, fingindo se parecer com a Ideia:


O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-se com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança, embora conservasse a imagem" (LS, 1974, p. 263).

E mais, após a queda, tornamo-nos simulacros, perdemos nossa existência moral para entrarmos numa existência estética, porém, de caráter demoníaco, fantasmagórico. Ou seja, o simulacro consegue quebrar a cumplicidade harmoniosa entre Ideia e Cópia, subverte a “ordem natural” das coisas, cometendo uma felonia. O simulacro se esquece do pacto central formulado pela ideia e pela cópia, subvertendo essa suposta “amizade” . A simulação fantasma é a amnésia mais pura possível.

A partir dessa vontade de semelhança entre Ideia e Cópia é que vão ser engendradas quase todo o pensamento ocidental, como exemplos, a Lógica de Aristóteles (pois é ele quem desdobra a representação como bem fundada e limitada), o Cristianismo, o Cogito cartesiano, a Dialética hegeliana, o Númen de Kant e a Psicanálise freudiana. Vamos entender como a Ideia e a Cópia de Platão fizeram ressonância no ocidente. Grosso modo falando, na gramática aristotélica, essa divisão dual é feita a partir de um sujeito, que faz a ação, e de um objeto, que a recebe; essa ideia não remeteria, também, à lingüística estrutural de Saussure? No Cristianismo, o paraíso - a eternidade - é a Ideia, enquanto que, a Cópia, somos nós, habitantes efêmeros desse mundo. Descartes, abrindo a modernidade, não descartou a Ideia do "Pensar" como forma ideal de existirmos, ao passo que, se não pensássemos, não existiríamos. A Dialética tradicional de Hegel procede de maneira dicotômica (tese + antítese = síntese). Em kant, o mundo Numênico é uma extensão, em outras palavras, da Ideia-Cópia, de Platão. Na Psicanálise tradicional, a Ideia é o modelo de saúde psíquica e a Cópia, qualquer forma de doença espiritual que se mostre como defasagem em relação à Ideia. Em suma, todas essas insinuações se formularam por meio de um modelo que requer uma representação e uma linguagem binária.

Mesmo tendo elaborado essas ideias, Platão já deixava para os pensadores do porvir, a noção, mesmo que solapada, do simulacro fantasma. Então, se ele dá prioridade naquele momento à Ideia e à Cópia, os estóicos, em seguida, vão tentar trazer à superfície o simulacro. Em ordem, a Ideia estaria acima e a Copia, como representação, logo embaixo. E mais embaixo ainda, o simulacro, esquecido pela tradição filosófica, mas retomado pelos estóicos, Nietzsche e pelos filósofos da diferença, como fonte da própria Amnésia. Para estes, a distinção não é mais da Ideia e da Cópia, mas das cópias e dos simulacros. A matéria do simulacro é retomada para contestar tanto a Ideia quanto a Cópia. Se até então valorizavam-se as profundidades (os Pré-socráticos) e as alturas (Platão), os estóicos vão dar primazia à superfície, à simulação, ao fingimento, a incerteza e ao paradoxo. “O mais profundo é a pele”, disse Paul Valéry. Outro pensador, Michel Tournier, diz:


(...) Estranho preconceito, contudo, que valoriza cegamente a profundidade em detrimento da superfície e que pretende que superficial signifique não de vasta dimensão, mas de pouca profundidade, enquanto que profundo significa ao contrário de grande profundidade e não de fraca superfície. E, entretanto, um sentimento como o amor mede-se bem melhor, ao que me parece, se é que pode ser medido, pela importância de sua superfície do que pelo grau de profundidade.


Assim, o simulacro não é, como as pessoas imaginam, uma falsa cópia, mas uma maneira de pôr em xeque as próprias noções de Ideia e cópia. O que o pensamento tradicional sempre quis foi impedir que subisse à superfície o fantasma, justamente, porque seria difícil impor-lhe limites, ordená-lo, nomeá-lo, torná-lo semelhante. Reverter o platonismo, montar uma máquina de guerra contra toda opressão do pensamento e da linguagem, contra essa vazia cultura ocidental (que só reduz a vida) é “fazer subir à superfície os simulacros, afirmar seus direitos entre a Ideia e a Cópia. O problema não concerne mais à distinção essência-aparência, ou modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação” (LS, 1974, p. 267). No mundo da diferença, a questão é a embriaguês de Dioníso: o eterno retorno do simulacro e do fantasma solitário e esquecido que anda dançando por aí feito criança, transbordando alegria. Por tudo o que foi dito, como resistentes o insistentes que somos, salve Platão e  seu  simulacro, salve o pensamento da diferença, mas sobretudo, o tempo de... o tempo... o tempo... o tempo de Aion.




  1. LS (Lógica do Sentido, Gilles Deleuze, 1974)

1° ETAPA DE DESTILAÇÃO

SAUDADES DO PORVIR








































































































































































































(...) deu um branco!