quarta-feira, 20 de abril de 2011

10° ETAPA DE DESTILAÇÃO

O VISCOSO

"Ele tenta se fortalecer demonstrando minha fraqueza."

“Cinco coisas ele nega assim como eu: 1, o Livre-arbítrio; 2, a Moral; 3, os fins; 4, o não-egoísmo; e 5, o mal.” Carta de Nietzsche, sobre Spinoza.


Durante toda a minha vida acadêmica tive o desprazer de conhecer uma espécie bastante triste e fraca. E aqui, no estado, dizem que essa raça se prolifera com mais facilidade. Por causa de sua localização geográfica e sua constituição histórica, o Espírito Santo deve ter ressentido uma atenção especial (sei lá, mas espremido pelo RJ, MG e SP, esse lugar acabou sendo esquecido, tornando-se, então, amargurado). Geralmente, a inveja acomete à pessoa muito mimada e vaidosa, carente de aplausos. Essa espécie, a quem chamamos de “viscoso”, está muito em moda nos dias de hoje, mas sempre se pôde ouvir falar a seu respeito. Um amigo de buteco, Gazu, certa vez me disse assim, “como nossa sociedade anda ressentida, as pessoas só abrem a boca pra falar mal umas das outras; parece que só aprenderam a criticar negativamente o próximo (em qualquer situação), mas não a olhar a si mesmos e seus graves defeitos, como a autocomiseração e o ressentimento”. Do Viscoso, só nos resta desviar o olhar e rir bastante, como fazia Mozart. O ressentido age pela paixão e não pela ação. Sua atitude não sendo ativa, torna-se re-ativa. Não me lembro qual filme, onde o personagem principal dizia que “o ressentimento é o veneno que você toma esperando que o outro morra.” Não há nada que deprima mais o ser humano (mais depressa) do que a paixão do ressentimento. Aí, pensei sobre o que dissera Gazu e percebi dias depois que ele tinha razão, e que esse sentimento ressentido não era apenas um mal atual, mas de longa data.


Se pegarmos a “Genealogia da Moral”, de Nietzsche, iremos entender como foi produzido o ressentimento em seus corações. Não somente a ideia de ressentimento é desconstruída, mas também a noção de culpa. O ressentido quer sempre atribuir culpa ao outro como se o outro fosse totalmente responsável por suas ações. Primeiramente, rechaçamos logo essa ideia de culpa porque pressupõe a noção de um “eu” com “livre-arbítrio”. Isso, como se sabe, são ficções lingüísticas forjadas pelo pensamento platônico e pela lógica aristotélica. Mas não quero me prender mais uma vez a isso. A conversa aqui diz respeito tão somente aos vampiros, que Sartre denominou “Viscoso”:


"O viscoso vence não porque é mais forte, mas justamente por sua fraqueza, ele acabacolando e sugandotoda a energiadoutro."


As pessoas que não conseguem dar sentido a suas vidas se tornam extremamente viscosas e, em consequencia, como descarregamento de seu peso, jogam todo o seu ressentimento em cima dos outros. Uma maneira de detectar um ressentido viscoso é ver que sua revolta é sempre pessoal, pois quer atingir imediatamente o outro, o próximo; ao contrário, pois, quando tomamos uma atitude de resistência em relação àquilo que realmente nos oprime, atacamos linhas de pensamentos, poderes estabelecidos, posturas dominantes, ou seja, o distante em uma coletividade.


O Viscoso (leia-se também “vingativo para com a vida” ) surge quando as fabulações de “bom” e “mau” são construídas, conceitos básicos da moralidade humana. Os nobres definem o que é “bom” por si mesmos – o que eu faço é bom! Uma moral verdadeiramente nobre é de auto-afirmação. Uma moral escrava (O Viscoso) não define o que é bom a partir de si mesmo, mas reativamente, por negação das qualidades do homem nobre, ou seja – o que ele faz é mau! O que o nobre enxerga como “bom”, felicidade, paixão pela vida, confiança em sua superioridade, afirmação de sua potência, orgulho, força, coragem etc., para o ressentido escravo são tidas como “más”. De modo que para o escravo, ao contrário da pessoa , o conceito moral chave é a noção negativa de “mau” e não a noção positiva de “bom”. O escravo pensa as categorias de moralidade a partir de sua própria fraqueza e impotência. Incapaz de aceitar sua condição real ou de lutar contra o que lhe incomoda, o ressentido reage desvalorizando as qualidades do homem nobre, tratando-as como moralmente negativas, em um movimento de projeção; ressente-se da força do tipo nobre, na qual vê espelhada sua impotência. O escravo ressente-se do que a vida lhe oferece e do que ele mesmo considera-se capaz de fazer com ela, e vinga-se simbolicamente, desqualificando moralmente os que são capazes de afirmar suas vontades. E graças ao cristianismo – o sacerdote –, segundo Nietzsche, esse modelo de moralidade, código moral do tipo humano servil, vinga até hoje. Em outras palavras, o nobre agora, passa a julgar-se pelos padrões do escravo, que o considera “mau”, passando a comportar-se tal como o escravo, isto é, contra seus impulsos, características e valores; volta suas forças contra si mesmo, tornando-se culpado, impotente e infeliz.


Em outras palavras, o ressentido para se afirmar precisa necessariamente negar o outro enquanto que o homem nobre, para se afirmar, nem sequer pensa no outro. Uma outra da forma de perceber um ressentido é através de sua ironia. A ironia é a tentativa viscosa de humor do ressentido. A ironia é marca do ressentido, basta lembrarmos de Sócrates, um grego em decadência. A diferença entre Ironia e Humor, entretanto, só nas próximas etapas de destilação. Desculpe-me, mas é impossível desagradar a todos sempre...rs.


Outra característica do viscoso, percebam, é sua espantosa insegurança. Reparem como ele tem imensa convicção em suas ideias. Nietzsche já dizia que o pior inimigo da verdade não é a mentira, mas a convicção. Quando o ressentido viscoso diz ter certeza sobre algo é apenas sinal de sua insegurança. Não existem certezas ou verdades absolutas. Toda certeza é tão-somente uma necessidade psicológica de duração da vontade humana diante da efemeridade terrena, ou seja, uma forma de adquirir, mesmo reduzindo a vida, uma falsa segurança:


“Não se encha de ar: senão basta uma alfinetada para estourá-lo." F. N.


E como desviar o olhar, dizer não aos vampiros-ressentidos-viscosos?

“Como faço pra subir aquele monte?  - Não pense, apenas suba!”  Nietzsche
O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo. Fernando Pessoa


Quem viu "Mente Brilhante", deve se recordar que John Nash, personagem protagonista, finalmente, depois de tanto sofrimento por causa de uma devastadora esquizofrenia, aprende a lidar com sua "doença". É importante dizer "lidar", e não se "curar", já que sua "doença" era algo parte de sua constituição mental. E o que foi descoberto no fim da historia? Sim, ele passou a “desviar” o olhar:


"Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar..."


Neste trecho de “O Guardador de Rebanhos, poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o que parece ser mais evidente é uma vontade de desrazão, ou seja, o poeta reitera a vontade de “não-pensar” como estribilho dessa estrofe. Por quê? É metáfora que representa as forças criadoras da vida, a força dionisíaca, em oposição à razão, ao pensamento, à força apolínea. Ele questiona o modo pela qual se estabeleceu a razão como superior à emoção. Em suma, uma crítica à racionalidade e à vontade de pensar, sobretudo, depois que Descartes disse que só o Ser com a faculdade do pensamento pode existir. Como disse Edgar Morin:


(...) uma percepção visual é o fruto da transformação de fótons, de estímulos luminosos sobre miríades de células que se encontram em nossa retina. Esses estímulos são codificados de modo binário e atravessam o nervo óptico, sofrem diferentes transformações em nosso cérebro para nos fornecer uma representação, uma percepção.


O modo de pensarmos desde Parmênides/Platão, como foi dito na etapa “O Fantasma” é dicotômico: estímulo-resposta, verdade-exclusão etc.. Até mesmo quando se supõe sair dessa binaridade, por exemplo, o travesti, ainda se faz preso a dualidade homem-mulher. A própria lingüística funciona de maneira binária, veja Saussure. Assim, pensar é uma forma reduzida de olhar a vida. O próprio Pessoa faz distinção entre “olhar” e “ver” no poema já aludido. Ou seja, assim como nossa Moral, pensar como se pensa ainda hoje pode vir a matar a vontade de viver, gerando as mais diversas neuroses. Deleuze ao interpretar Spinoza, coloca: 

Geralmente as pessoas fazem o somatório de suas infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando alguém se mete a contabilizar: "Ah, merda, há isso, e aquilo..." Spinoza propõe o inverso: ao invés de fazer o somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria como um ponto de partida local, à condição que sintamos que ela nos concerne verdadeiramente. Em cima disso forma-se a noção comum, em cima disso tenta-se ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para toda a vida. (...) a única coisa que conta são as maneiras de viver. A única coisa que conta é a meditação da vida, e a filosofia só pode ser uma meditação da vida; longe de ser uma meditação da morte, é a operação que consiste em fazer com que a morte só afete enfim a proporção relativamente menor de mim, a saber: vivê-la como um mau encontro. Simplesmente sabe-se muito bem que, à medida que um corpo se fatiga, as probabilidades de maus encontros aumentam.


De fato, o problema todo está no olhar ressentido do outro. E esse olhar ressentido pode acabar produzindo culpa em quem o recebe, gerando imensas neuroses. Aí, compadre, é um passo para se desenvolver uma esquizofrenia. “O inferno são os outros” disse Sartre.


Podemos então dizer que para obtermos sempre bons encontros seria desnecessário “pensar” quando nosso corpo vai mal, pois o risco de termos pensamentos ruins aumentam. Segundo Deleuze, só nos tornamos inteligentes quando fazemos um bom encontro com nosso corpo, e que nada em sua decomposição pode nos tornar sagazes, ou seja, afetados por um afeto triste (aqui, entendido como aquilo que descaracteriza as funções de nosso corpo e nos faz sucumbir), não teríamos sequer possibilidades de bons pensamentos. Nesse sentido, aprender a desviar o olhar se tornaria a maneira pela qual poderíamos lidar com o ressentido e nossa própria loucura já que ainda somos escravos do pensamento e da linguagem. Como diz Barthes, a linha de fuga da pensamento não está fora da linguagem, mas ela é o seu fora. No aforismo 276 de “A Gaia Ciência”, Nietzsche diz:


Amor Fati: seja esse de agora em diante o meu amor. Não quero fazer guerra ao feio. Não quero acusar nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de ora em diante, a minha única negação. De resto, quero a partir de hoje ser alguém que apenas diz sim.


Como diz Deleuze, alguém que diz “sim” aos bons encontros, aos bons afetos, aos bons pensamentos; e quem diz “não” aos maus encontros e pensamentos, consegue enfim desviar o olhar. Desviar o olhar como quem busca um novo horizonte. Esse é o “fora” do pensamento. É uma pena que John Nash tenha descoberto isso só no fim da vida. É uma pena que a maioria queira fugir dos vampiros e se “curar” da loucura por meio da razão. Não! Assim, como só aprendemos a ler Nietzsche por meio do seu não-estilo, de sua desrazão, de sua loucura, de sua não-filosofia. Uma das resistências de hoje é traçar uma linha de fuga em relação ao viscoso ressentido a fim de que não sejamos infectados pela sua fraqueza e contagiados pela sua tristeza.